30 janeiro 2007

 

BREVE MEMÓRIA DE MINHAS FÉRIAS NA CASA DE MEUS AVÓS


Às vezes sinto um buraco em minha alma quando chega o mês de janeiro. Talvez o sinta por causa da significância que este mês tem para as travessuras e recordações da minha infância. Era o mês em que eu e meus primos nos reuníamos na casa de nossos avós para passar alguns dias de nossas férias. Lembro-me bem daquela casa de telhas altas e velhas, móveis rústicos, quartos escuros, corredor longo, cozinha larga e o quintal... o quintal era um reino encantado. Havia animais como: marrecos, galinhas, cabras e pássaros engaiolados sob os galhos de um imenso pé de goiaba, o qual certo dia, após subi-lo, caí e quebrei um braço. Havia um pilão para triturar em um almofariz o café de todo dia, vovô era que o fazia. No quintal havia ainda uma rede, um banheiro e uma pocilga. O quintal era enorme.

Lembro-me bem, e é como se ainda ecoassem em mim aqueles gritos da vovó:
- Menino larga já isso. Eu te dou umas palmadas. Isso não pode. Vem já comer. Deixa desse corre-corre dentro de casa. Eu vou falar pra sua mãe. Larga já estes bichos. Vem logo tomar seu banho. Já está na hora de dormir...
Essas e outras advertências parecem ainda estar bem vivas dentro de mim. Penso que talvez eu fosse um dos netos mais agitados, um dos mais rebeldes, um dos mais inquietos. E acho que essa agitação, rebeldia e inquietude nunca me escaparam. Vejo que aquele caos que deixa desgovernada a mente de uma criança em mim permaneceu sempre.
Recordo as manhãs de sol que banhavam o quintal. Ao término do café da manhã, eu espalhava meus brinquedos embaixo do pé de goiaba e ia criando um universo de magia e encanto. Procurava meu bodoque para ver em quantas galinhas eu conseguiria acertar. Sempre era surpreendido pelos gritos de minha avó:
- Menino, você vai matar as galinhas do seu avô!

A hora do almoço se aproximava e meus primos e eu corríamos para a mesa da cozinha com as mãos cheias de barro, até que a vovó nos convidava a dar meia volta e ir lavá-las. Certo dia não as lavei por preguiça, e um primo meu, Ricardo, resolveu me dedurar. Foi então que minha avó me levou da mesa até a pia, arrastando-me pelas orelhas. E isso me enfureceu bastante. Como plano de vingança resolvi atingir meu primo “dedo-duro”, colocando no almoço dele, sem que ele percebesse, três baratas mortas que eu havia guardado há dois dias.
Depois do almoço íamos, eu e meus primos, nos jogar no corredor, agudamente inclinado, da casa. O chão liso nos servia de pista de esqui. Marcávamos distância e nos lançávamos contra o chão escorregadio, indo assim ir parar com algazarra na entrada da cozinha, onde tranquilamente nossos avós tentavam almoçar.

Após o lanche da tarde, quando a quentura do sol já não era intensa, ganhávamos novamente o quintal. A gritaria era tanta que os vizinhos por vezes se assustavam. Mas não reclamavam. A tarde passava. A noite ia chegando de manso. Chegava então a hora de recolher os brinquedos, que se misturavam aos animais. Depois do banho e da janta nos preparávamos para escutar as estórias do vovô. Íamos dormir às vezes perplexos, já que aos poucos descobríamos com ele novos mundos, coisas novas. Íamos dormir sonhando com as novas brincadeiras, com as novas comidas da vovó, com as estórias do vovô, com o próximo dia... E desse sono parece que nunca acordei. O tempo passou, meus avós passaram, e ficou o neto, inquieto.


(MARQUES, Wagner ; Texto publicado no Jornal Gazeta de Garanhuns; em janeiro/2006)

28 janeiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO –


SILÊNCIO

Ultimamente
não se tem escutado
coisas sérias,
as crianças têm andado
muito caladas.

26 janeiro 2007

 

CAMBALEANTE
Podia ser que dentro dela houvesse algo de triste. Não era certo. Pelo menos seus olhos nada denunciavam. Sequer um sopro de dor vazava de sua vista. Aparentava ter vontade de querer sair correndo dali. Mas estava ali, quieta, no seu canto. Muda. Um cigarro vez em quando, tragadas leves, baforadas sutis. Levava o copo à boca com alguma lerdeza, sem aquela pressa a qual um ladrão tem depois de um roubo. Um gole ou outro, espaçado. Passava a mão no canto dos lábios procurando extinguir a umidade da bebida. Baixava a cabeça com as mãos suspendendo o queixo, como se quisesse enterrar a cabeça na mesa, ou mesmo no cinzeiro de vidro que a sua frente ficava. Vez por outra mergulhava seu rosto nas mãos como se estivesse enfiando-o num buraco pra nunca mais tirá-lo. Era como se não houvesse nada perto de si, talvez se achasse em algum lugar vazio.

Estava ali. De quando em quando olhando pro relógio, querendo talvez engolir o tempo. O tempo às vezes é um adversário. No entanto, o movimento pausado de seus membros dava a impressão de que tudo estava em sua mais adequada velocidade. Os segundos pareciam eternidades diante de sua cara desbotada. Talvez faltasse algo mesmo. Sempre está nos faltando algo. Mas os sinais de necessidade não se mostravam fáceis. Mantinha o cenho inflexível, rijo. Olhar disperso; vez por outra, compenetrado. Fusão de sensações em um único corpo. Isolação. Estava sozinha na mesa. E não há bebida que compense a solidão de quem está só numa mesa. E tudo aos poucos em sua fisionomia parecia obedecer à quantidade de bebida consumida.

* * *

Um terço de hora passada. Após goles e mais goles. Cinzeiro entupido de bitucas. Copo caído. Seu corpo penso sobre a cadeira; de leve, jogava-se de peito de encontro à mesa. O álcool a levara a uma dormência veemente. Frouxa. Levantou-se trôpega. Arrancou do bolso seus poucos vinténs, não sabia quanto. Jogo-os na mão do garçom. Lembrou-se de que ali havia paredes, e estas, por sua vez, poderiam guiá-la a algum lugar. Mas qual? Não importaria. Saiu do bar. Cambaleante. Tinha tato. Os muros da rua poderiam levá-la. Tem coisas que sempre podem nos levar a algum lugar. Seguiu pela calçada. Andando custosamente. Respiração ofegante. Pé lá, outro cá. Arrastando-se. Velocidade de tartaruga. Ia-se embora. Sem dizer nada, não era preciso. O que quer que sentisse, só pertencia a ela, a ela apenas. Que guardasse pra si o que seus olhos não queriam - nem tampouco deveriam - denunciar. Foi-se. Sumiu na noite, que devorava as horas sem dizer nada, não era preciso.

25 janeiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


JARDIM

Se os homens soubessem
quanta solidão
existe num único jardim,
viveriam a custo
de flores.

24 janeiro 2007

 

Pintura de René Magritte


O AMOR NASCE DO SUSTO


ABISMOS, PARAÍSOS.


Acho mesmo que estou começando a aprender o que é amar. Amar sem armadilhas. Sem fita métrica. Não haveria termo mais piegas do que este: “aprendendo a amar”. No entanto, é o mais adequado quando se trata de momentos em que a gente se sente seguro com uma pessoa, após vários tombos com outras. Drummond achava que “amar se aprende amando”. A meu ver, é uma concepção que talvez nos leve a uma das maneiras mais ousadas de se aprender a amar, amando. Amar no susto. O amor por si nasce do susto. Isso mesmo, só se começa a amar alguém quando esse alguém nos assusta. É um assombro que nos pega de tal forma que só se espera que a outra pessoa nos compense esse susto com o algo desconhecido que nossa alma pede, enquanto o corpo ainda treme. Vem, então, a ânsia de encontrar o universo da gente naquela pessoa, um universo que contenha todas as ferramentas necessárias à felicidade.

Penso agora: como amar sem armadilhas? É... creio que caí em um caminho tortuoso ao me deparar com esta questão! Nem tanto. Ora, o primeiro princípio que se deve ter em mente ao se pisar no terreno íngreme do amor, é que pode se chegar tanto a um abismo como a um paraíso. Daí a coisa se torna meio que “um tiro no escuro”. Pode se chegar tanto em um lugar como no outro, pelo simples fato do amor exigir cumplicidade, e na cumplicidade qualquer falha corrompe o que existe entre ambos. E o que existe entre ambos não deve ser medido, pelo menos dentro da relação, pois a medida das coisas às vezes nos limita ao que pensamos ser, anestesiando talvez o que tanto um como o outro poderia trazer de positivo à relação.

Amar é mesmo um estragar-se, uma violência consigo mesmo. É um desconhecer-se para conhecer o outro. Uma recompensa que queremos nos dar a fim de compensar as desgraças que a vida nos faz enfrentar, embora no amor às vezes esteja a própria desgraça. Deve-se amar como quem vai sem esperança de volta. Amar com o equilíbrio de quem doma um leão. Com a palavra “imprevisibilidade” sempre a fronte. Amar é tornar-se violento, esfacelado. É dar um algo que não se tem, um fio de luz penetrável.

23 janeiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


BORBOLETAS

Todo movimento no vôo
das borboletas
é uma tentativa
de acariciar
o vento.

22 janeiro 2007

 

O QUE EU VIRIA A TER NO CÉREBRO?


Eu devia estar com uns 10 ou 11 anos de idade. “Vou levar esse menino pra sentir água salgada, ver o mar”, disse minha mãe, com intento de que eu conhecesse uma fração da extensão de água que cobre a maior parte da superfície terrestre. Arrastou-me à Maceió, Alagoas. Animei-me. Já haviam me dito que o mar era muito bonito, sobretudo, imenso. A Praia da Sereia foi a escolhida. Seguimos, então. Já na estrada eu sentia algo de salutar na paisagem rural que o caminho me oferecera: gente tangendo gado, mulheres nos fogões de lenha no lado de fora das casas, canavial esverdeado, currais com bichos robustos, menino com estilingue na mão, tratores arando terras, pássaros cortando o céu, garotas de mini-saias curtíssimas nas margens da BR; “tire a vista!”, ordenava-me minha mãe - e assim eu o fazia, mesmo sem saber o porquê.

Ao chegarmos à cidade, uma onda de calor forrou-me logo o corpo. “Sol de quase dezembro”. A quentura daquela capital parecia querer derreter meu cérebro, embora não soubesse o que seria necessariamente um “cérebro”, mas já tinha ouvido alguém falar essa palavra, acabei por achá-la bonita - “cérebro”. Mais tarde deduzi que o “cérebro” ficava na cabeça, conquanto não soubesse em que parte e qual sua utilidade. Chegamos então à pousada aonde iríamos nos hospedar, perto do mar. Avistei de longe a imensidão de água esverdeada que marejava a areia. “É ali”, apontou minha mãe. “Eu sei”, respondi com um ar de sabichão. Após termos deixado as bagagens na estalagem e feito um lanche, seguimos para a praia. Achei um tanto quanto constrangedor sair por aquela avenida com uma coisa que minha mãe me convenceu a chamar de “sunga”.

Apanhei-me surpreendido ao ver tanta gente semi-nua. Começaria aí, então, o meu suplício, ao notar que não seria tão equilibrado a ponto de controlar meus instintos; para ser mais franco, descobri-me, naquela hora, incapaz de suster minha excitação diante de tantas mulheres com corpos expostos. Entortei-me. Fiz o que pude, tentando esconder o mondrongo que surgia na fronte de minha sunga. Tive vergonha de que os outros o percebessem. Aquilo se tornara inevitável. Creio que está diante do mar não me causou tanto êxtase quanto o ato de contemplar tantas bundas e seios expostamente reunidos num lugar só. Virava-me para um lado e para outro, tentando esconder o meu quase reprimido excitamento. Colocava as mãos em cima. Curvava-me com desespero. Sofria...

Flagrei minha mãe em zombaria, num escárnio chistoso à vista da situação em que me encontrava. Generalizou:
- Ah, homens... Será que eles só têm essas coisas no cérebro?! Disse em meio a uma gargalhada fatal.

A palavra “cérebro” novamente me encontrava. “O que é cérebro?” Mais uma vez acabava por me perguntar. Angustiava-me. Não havia encontrado respostas. No entanto, só sabia que eu era homem, e como tal, teria alguma coisa no cérebro! Mas o quê? Obrigatoriamente todos os homens teriam - ou têm - algo no cérebro? Mais difícil ainda seria responder isso! Emudeci. Aquietei-me. Permaneci curioso por mais alguns anos, sem saber se tinha alguma coisa no cérebro.

19 janeiro 2007

 
- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO –


DAS LÁGRIMAS

As lágrimas são
um pouquinho da gente
que foge a nossos
olhos.

18 janeiro 2007

 

Pintura de Caravaggio


CONSIDERAÇÕES SOBRE UM ABRAÇO


O que me comove - vez em quando - , não, não é a espera de um abraço. (O calor do corpo às vezes é mais importante que um abraço.) Mas se assim tivesse de me enternecer nessa espera, desejaria aquele abraço que parece que os corpos não mais vão se desgrudar, aquele que de quando em quando, nos frustra, faz a gente desejar que tal corpo jamais nos fuja. Hora em que nós esperamos enterrar nosso corpo na outra pessoa. Há pessoas as quais se pudéssemos enterraríamos nossas vidas nelas, sem ao menos fazer questão de velórios ou dias de luto. Mais ainda: viraríamos pó e nos entregaríamos de alma e corpo a elas, ainda fossem redemoinhos. Só que não é tanto o que me comove. Acho mesmo que toda espera é angustiante, ainda mais se tratando de um abraço, pois o abraço foi a forma mais sutil que o ser humano criou para conter seu desejo de virar tatuagem.


Descubro que há pessoas que para serem felizes precisariam de um abraço, um único abraço apenas. Ora, mas um abraço somente não basta. O calor do corpo deve mais que falar; convidar, acolher. Ele (o calor) é o responsável pelo modo cativo da alma. E para se cativar é necessário se ter uma espécie de termômetro no coração, que faça ponte entre olhos e sentimento. Existem pessoas que ficam pequenas em nossos braços, em contrapartida existem também aquelas as quais nossos braços ficam curtos para elas. Todavia, sábio é aquele que mais que encontrar-se num abraço, sabe encontrar-se na pessoa abraçada, como se fosse um encontro com o próprio lençol em noites de frio, com a própria roupa em meio à nudez do corpo.

17 janeiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -

DA CHUVA QUE CAI

A chuva é uma invenção,
Um disfarce,
Uma mentira
que Deus o criou pra
Esconder seu próprio choro.

15 janeiro 2007

 

ESCONDERIJO E DISFARCE NO ENTRE AMOR E AMIZADE


Quando criança eu concebia o amor como um jogo de ximbra, bola de gude. Sabia apenas que era como se fosse uma espécie de alvo que se tinha que acertar para não ficar sofrendo. Não conseguia entender bem essas coisas, tinha escutado algumas pessoas dizerem que isso era coisa de gente grande. Mas havia algo de bom que não me explicavam: quando ficávamos nus frente a frente, eu e minha vizinha daqueles tempos: “Bota a mão no meu, que eu boto a mão na tua”. Inebriávamos. Algum tempo a mais se passou, cheguei à puberdade, e descobri que se ficar excitado era bom, gozar era melhor ainda. Alertaram-me que a coisa não deveria ser bem assim. Os sentimentos existiam para equilibrar as coisas. O equilíbrio deveria acontecer também entre as pessoas. Foi então quando, seriamente, me falaram sobre o amor. Disseram-me que ele - normalmente - nascia entre um homem e uma mulher. O amor era uma forma de respeitar e equilibrar a relação.

Mesmo com essas informações vagas sobre o que viria a ser o amor, em nada isso me fez controlar meus instintos. Tinha pra mim que não havia nada de complicado num convívio com uma mulher. Falaram-me em amizade. “Um homem também pode aprender a cultivar a amizade com uma mulher”, ouvi isso desgostosamente. Sim, me vi travado. Depois do desejo de está ligado a uma mulher, qual seria a zona fronteiriça entre o amor e a amizade de uma mulher? Desabei. Encurralei-me. Passei a amar as mulheres sem nenhum cuidado. Procurava um esconderijo na amizade para disfarçar um provável amor. Um amor que nascia por um mero descuido delas, ao passar ou com uma saia curta ou um decote ao mostrar parte de seus seios.

Eu sabia quando era amor ou amizade. Subia-me um fogo, suava, a respiração pesava, as pernas tremiam, o desejo me fazia imaginar aquela pessoa às mil formas. Sabia quando era amor ou amizade, mas não sabia necessariamente separá-los. Contudo, eu dizia ser amor; achava que pelo fato da palavra ter menos letras pesaria menos. Decidi amar apenas. A única coisa que aprendi foi que a amizade poderia me levar ao amor; mas, já o amor nunca à amizade. Este último caso se transformava, então, num caminho sem volta. Era como se o amor, ao seu término, dissipasse qualquer estratégia de reação à amizade. Amei sem leis, sem regras. Apenas para sentir o tempo e as pessoas passarem. Amei para dar um fim às amizades que nasciam.

14 janeiro 2007

 

Foto de Manuel Bandeira



A LA BANDEIRA


Ultimamente tenho acordado com vontade danada de ler Bandeira. Sim, mas ler como uma criança que se entretêm ao chupar seu pirulito. Que poema então haveria eu de ler? (pensei irresoluto) Ansiei um poema que me causasse uma sensação de ingenuidade e ao mesmo tempo me causasse uma impressão de tormento, busca de liberdade. Certo dia, ouvi um poeta dizer que não somos nós quem procuramos os poemas, mas sim eles que nos procuram. Ao abrir Estrela da Vida Inteira, o poema abaixo me saltou como um sapo ao perceber seu predador. Agarrou meus olhos como uma mulher desnuda. Segue abaixo o poema, que se fará a veia deste post:




CANÇÃO DO SUICIDA

Não me matarei, meus amigos.
Não o farei, possivelmente.
Mas que tenho vontade, tenho.
Tenho, e, muito curiosamente.

Com um tiro. Um tiro no ouvido,
Vingança contra a condição
Humana, aí de nós! sobre-humana
De ser dotado de razão.

(Manuel Bandeira, 1963)

09 janeiro 2007

 


Foto: Hélder Carvalho


NOITE NEVOENTA EM GARANHUNS


Nevoou hoje em Garanhuns. Primeira noite de névoa deste verão. Há tempos que Garanhuns não ficara tão original quão hoje. Pôde-se sentir aquele friozinho próprio do inverno. Na falta de algo melhor, decidi sentir o bafo frio da cidade, caminhar pelas ruas, sozinho mesmo. É incrível como mesmo diante de uma garoa, tão mansa e suave, as algumas poucas pessoas que se atreveram arrojar-se à rua, não conseguiram se libertar de suas caras de estertor e entojo; ainda se deixaram fatigar pelas suas desgraças diárias, e, ofuscavam-se diante de algo tão inebriante como o chuviscar leve dessa noite.

Procurei caminhar a esmo. Buscando o máximo de leveza. Que o mundo explodisse, enfim! Tentei intensamente mergulhar meus olhos no breu abaciado que contornava as luzes dos beirais dos prédios, casas e postes. A cidade ganhara roupa nova. Um cobertor sublime. Um manto de rosas amaciadas, suaves. Encanto europeu no gume hibernal.

Sentei-me em um banco de uma Praça, no Centro. Junto a mim, um casal de cachorros começou a se comer, ou melhor, cruzar; pode ser foder mesmo. Aquele regozijo do par de cães, quase ao meu lado, me enterneceu. Noite boa pra fazer essas coisas; sendo que lógico sem aquele pique canino, pensei com meus botões. O frio descia brando, com tino. Dei mais algumas voltas por alguns bairros acinzentados, decidi voltar pra casa; deixando a noite devorar-se, com céu anuviado, as poças tímidas na rua, as calçadas quase desertas.

08 janeiro 2007

 
NO TRONO DE UM APARTAMENTO


Que merda: Está em pleno domingo à noite querendo escrever algo (nem que seja pra espantar a monotonia de início de semana) e de repente as palavras [a custo de suas durezas] lhe tornar intolerante consigo mesmo! Parece coisa até de rebelde sem causa, ou de adolescente mal resolvido. Escutei a pouco Ariano Suassuna dizer - em entrevista ao Fantástico - que “a literatura, como as outras artes, é um protesto contra a morte”. Acho que isso me convence a estar protestando, não só pela morte como fim da vida, mas também pela morte que a literatura produz no escritor quando sequer uma linha lhe roça o juízo. Sim, porque isso causa uma sensação de mortandade em qualquer escritor, na medida em que o iguala ao resto da raça.


Embora essa espécie de ressaca, gerada no domingo à noite, que embriaga qualquer assalariado ou preguiçoso, também me deixe inerte, procuro na escrita a maneira mais discreta de fugir dessa insipidez. Fuga que, obviamente, dura no máximo uma semana apenas. Nada mais que do que isso. Ora, não que a minha vida esteja enfadonha, decadente; não é nada disso, é que às vezes me é necessário não criar hábitos, rotinas. Porém a intolerância que me invade, não chega a me arruinar de todo; logo, procurei não me agoniar porque as palavras, hoje, não me chegaram fáceis; mas, PARO por aqui, já perto de ser vencido pelo sono - “com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”. Basta.

06 janeiro 2007

 




Vídeo com Chico Science - Maracatu de Tiro Certeiro

 



“Toda confissão não transfigurada pela arte é indecente.”
(Mário Quintana)


Não que fosse outra espécie de mulher. Mas a carne se diferenciava do que viria a ser uma mulher apenas. Monstro feminino, talvez. Por ora se fazia delicada quão uma taça de vinho derramada sobre a toalha branca de uma mesa, ou mesmo como os cabelos soltos de uma criança a um vento de início de manhã. Aos poucos se tornava uma brisa que se fazia tempestade, fruta de gosto amarga que se fixava na língua, fragrância de pecado encarnada numa fêmea, corpo de cadela com alma de lesma.

04 janeiro 2007

 
Foto do poeta André Luiz de Castro

O POETA VISITA A TERRA DA ÍNDIA DOS LÁBIOS DE MEL


Foi-se pra Fortaleza. “Férias merecidas”. Falo do poeta André Luiz de Castro. Fiquei sabendo de sua ida através do poeta Horttta (que, aliás, estrebucha por ter recebido garbosos elogios de outro poeta: Fabrício Carpinejar. Horttta dirá que a inveja me assola). André foi-se embora sem alarde, como um tiro pela culatra. Alegou precisar de férias. Não me convenceu, ainda mais quando fiquei sabendo que iria ficar alojado com seus (ex-) “irmãos” monges.

André já foi monge. Tudo me leva a crer que - apesar de hoje em dia casado - ele tivera uma recaída. Deu pra trás. Acredito que será só questão de tempo para Cibele (sua esposa) se ver dividida, pelo menos, com o Diaconato do poeta. Ultimamente ele andava suspirando ao recordar sua fase passada no seminário. Quase golfando. E agora, pronto, o fim, visita uma de suas antigas vivendas.

Em seu Blog o poeta diz está tranqüilo, “muito tranqüilo”. Não creio que tenha dito isso sem estar ao menos com uma Bíblia na mão, ou rodeado de seminaristas (risos). Esta devoção de André me lembra outro poeta daqui de Garanhuns: Adelmo Camilo. Tenho medo de que a religiosidade cape o que pode vir a ser a poesia de André; mas tenho medo, principalmente, de que ele se encontre por lá com a alma de José de Alencar. Dá pra imaginar um encontro desses?

03 janeiro 2007

 

Pintura de Balthus
A AVENTURA DE ESCREVER UM ROMANCE


Aventuro-me. Começo a escanchar as primeiras linhas de um Romance. Ousadia? Loucura? Nem eu mesmo sei responder... Digo loucura ou ousadia se compararmos à maturidade que alguns escritores esperaram atingir até rabiscar as primeiras linhas de seus Romances. Inicio o ano, então, com esse desafio: Lavrar um Romance. É fácil perceber que a maioria dos escritores ao se iniciar na prosa se arrisca logo nos contos ou nas crônicas. Formas de narrativa (bem) mais curtas do que um Romance, requer menos fôlego. Só que em mim algo cutucou com sede, ambição. Uma voz me impele, e já algum tempo, a escrever um Romance. Um dos gêneros literários que mais exigem destreza de quem o produz.

Posso adiantar que é um Romance urbano, com temas que apresentam certo carrego de conflitos de valores em nossa contemporaneidade, sendo estes valores ligados à imparcialidade entre escritor e leitor, contida por uma força não-depreciativa operante sobre o protagonista. Temas como drogas, homossexualismo, relações afetivas, suicídio e sexo, serão abordados numa tentativa de tragar a realidade sócio-cultural de nosso tempo. “O escritor deve testemunhar seu tempo”, esqueci o autor dessa afirmativa, mas acredito na veracidade que ela comporta.

Tenho a sensação de que ao obedecer essa voz da, talvez, “vaidade” que tenho de escrever um Romance, sinto-me como se estivesse num modesto barco em alto mar, ou como um sanfoneiro quando - por sono - quer deixar o salão na hora em que o forró já “tá pegado” em meio à negada bêbada. Sente-se o peso, a coisa séria mesmo. Todavia, acredito numa certa insegurança (como tempero) que se deve ter ao escrever, ainda mais quando se trata de um Romance. Toda aventura deve gerar um pouco de insegurança, temor. Aventuro-me, pois. Que venham estas linhas em forma de tempestade.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?