23 março 2008

 

NA CHUVA


Não sei, mas senti algo de divertido ao ficar olhando os pingos esburacarem o chão durante esses dias de chuva aqui em Garanhuns. Percebi que é sempre bom o cheiro da chuva, a água lavando as calçadas, os bêbados levando quedas nas ladeiras, as mulheres passando encharcadas com a roupa colada ao corpo, os meninos vadios se melando na lama. O melhor da chuva é perceber o quanto ela é ousada: chega sem pedir licença, sem bater à porta do chão, sem buscar acordo com as nuvens. Eu – em meio à agressão dos pingos que se jogavam com violência ao chão – estava olhando pela janela de minha casa, a esquina de minha rua, quando eis que surge um casal se agarrando e se beijando desesperadamente. (Achei que o amor também é desespero.) Foi interessante. Os corpos deles pareciam estar em brasas. Aí é que eu pensei que isso seria um desafio de corpos em chamas diante da chuva. Apagar o lume ou não? “O amor fogo, depois fumaça?” Ele a abraçava e a beijava de tal forma que parecia quase um estupro. Ela concedia, descia-lhe as mãos à virilha, resvalando decerto num lugar bem íntimo. Teve um momento em que ele a agarrou pelos cabelos e a encostou a um muro. Encostada ao muro, ela abriu de leve as pernas de modo que ele a prensou com força. Não fossem as roupas acredito que a penetração seria certa, fatal. Ficaram assim por instantes. A chuva parecia mesmo ser um culto ao prazer carnal. Pois, minutos depois que o casal afoito se fora, ao prender meu olhar minutos depois mais uma vez à rua, vejo um casal de cachorros se encaixando, rente a um poste. Tive a impressão de que a cadela não queria (até porque ela tentava se esquivar e latia muito quando ele chegava perto dela), mas o macho se aproximava insistentemente até ela mordia-lhe o pescoço e a orelha, e lhe chegava por trás procurando prendê-la ao encaixe. Era rápido. Ele não ligava para o barulho, nem a força da chuva, que esburacava o chão. Enquanto a chuva desabava, o cachorro forçosamente procurava se encaixar, sem pedir licença, sem buscar acordo com a cadela. (Foi aí que percebi que os cachorros também se desesperam, fatalmente.)

19 março 2008

 

IMOLAÇÃO DOS OSSOS (Romance)
Capítulo 7


E era como se fosse um desespero. Desespero tal como os ventres que não cospem homens. Veio-me aquela sensação de estar no escuro e sentir uma bala me queimar os tecidos – resvalo de pele que o disparo aquece. Tenho um apego muito grande ao que esquenta à minha frente. (Ou ao lado.) Ou até mesmo ao que me imerge. Ou ao que me fica inocente, como os sapinhos que eu gostava de ficar olhando no esgoto em frente a minha casa. (Eram sapinhos que ficavam parados, quietos. E eu sempre tinha a sensação de que eles estavam com vontade de pular ou arrotar. Eles prendiam a respiração, enchiam o papo de ar, arregalavam os olhos, mas sempre ficava algo preso na respiração deles: então me dava vontade de cantar ferrugem, inventar. Aquilo sempre me pareceu uma frase ao contrário. Será que o contrário de uma frase é sempre o silêncio? Mas para quê se preocupar com o silêncio. Acaso existe silêncio? Sabe-se lá! Eu acreditava que o silêncio era um barulho mudo. Por isso eu descascava todos meus gritos nas palavras que eu brincava antes de (*) me entrar pelo barulho da vida. Porque toda vida sempre desmancha a forma de calar o que se grita ou aflige. Mas aflição foi coisa que nunca me desmoronou. É porque sempre fugi o tempo todo do que nunca me afligiu.) Eu corro assim: imagino um rio em minha frente, e nele deve sempre algo boiar: uma perna (só uma perna) sobre as águas, um bote sem superfície, uma latinha de cerveja corroída pela tristeza de estar somente vazia, boiando. Espécie de abandono. Assim é que vivo nesses momentos, eterno abandono: me abandonando aos poucos: me largando por fora e por dentro. Gosto de me largar assim porque me inutilizo. É como se eu jogasse as minhas desnecessidades numa garrafa e as engolisse, todas: como se fosse ferrugem, de um prego. Prego é uma coisa que não merece ferrugem, pois ele geralmente já sofre o que deve quando machucam sua cabeça. Pois a cabeça é o que ama, o corpo não. A cabeça só foi feita para acusar erros, confessar culpa. Por isso, amo aos poucos. Devagar. Sem culpa. Foi a maneira mais fria que aprendi para esconder o amor que me falta e me persegue, a dor que em mim silencia: sem cuidados: como um ventre aberto. Quieto.

08 março 2008

 

foto: poeta Manoel de Barros


Uma Didática da Invenção do "O Livro das Ignorãnças"

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. Etc.etc.etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


IV


No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:Poesia é quando a tarde está competente para Dálias. É quandoAo lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite. E um sapo engole as auroras


IX


Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescerem nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica atéo mato sair na voz. Hoje eu desenho o cheiro das árvores.


IX


O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.


(Manoel de Barros)

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