22 setembro 2007

 

Pintura de Portinari


INUMAÇÃO


O cortejo subia a ladeira, lento. Arrastado. Poucas pessoas acompanhavam o corpo carregado e estendido num caixão marrom. “De facada”, era o que diziam. Em meio a soluços apertados, os que acompanhavam o enterro traziam em seus semblantes a áurea da descrença de que Abelardo havia sido vítima: esfaqueado durante a madrugada anterior. “Foram cinco na barriga e duas no pescoço”. Procuravam comentar isso de maneira discreta para que nenhum ente se atordoasse ainda mais. Era como se de fato não acreditassem na tragédia que ocorrera com aquele infeliz que varava madrugadas na boemia. “Não se sabe o motivo”. Ninguém ousava dá palpites sobre o que poderia ter levado uma pessoa a estirar as canelas de Abelardo.

Ao esquife passar em frente ao bar (onde também se encontravam algumas mulheres cansadas da vida e de tudo) sempre freqüentado pelo defunto, os seus amigos de copo e de mesa, maquinalmente, desnudavam suas cabeças. Uns sem timidez alguma mostravam suas calvícies, outros hesitavam em mostrar seus cabelos assanhados ao retirar os bonés ou chapéus. Outros ainda, meio que assustados, entupiam suas bocas com cigarros, entre um gole ou outro de bebida. O bar estava repleto. Escutava-se apenas o deslizar das lágrimas apertadas que se comprimiam entre pálpebras insidiosas. Logo ao acenar de longe o féretro, haviam providenciado a mudez do rádio. No entanto, o silêncio da morte havia apregoado um buraco nas caras estampadas dos que se remoíam ao sentir a dolorosa sensação de sede inacabável que a morte causa.

Os pés ao ralar o chão levantavam poeira. O ataúde mudava de tom e em certo momento parecia verde. As mãos suavam e formavam um grude peguento na alça dourada do caixão. Vera, sua esposa, era quase uma das últimas pessoas que formavam aquele grupo que encaminhava o corpo ao cemitério. Desolada, levava uma coroa de flores com uma fotografia de Abelardo, apertando-a ao peito de instante em instante. A mãe do morto agarrava-se à viúva quase que em engasgos irrefreáveis. Durante o trajeto do funeral percebia-se a comoção das pessoas: estanques de fronte às suas casas, benziam-se ao caixão atravessar as ruas como se aquilo representasse a saga de um santo sacrificado.

De qualquer forma, seguia. Subindo a ladeira com o arrastado do corpo mole das pessoas que traziam, além de um indivíduo falecido, a interrogação da morte. Que o caso ficasse nas mãos de Deus. Era o que repetia, Dona Heloísa, a tia mais velha do defunto. “Ele nos potrege”. E ia debulhando o terço. Apertando em cada pai-nosso os dedos e as unhas pretas de tantos mistérios. Já estavam à porta do cemitério. Não precisavam bater. Não precisavam pedir licença. Não precisava de mais nada, nem ao menos que Abelardo mostrasse sua calvície, nem tampouco viesse a entupir sua boca, pois já estava entupida, de algodão.

18 setembro 2007

 

DIÁRIO DE UM AMIGDALITANDO (3)


VII.

Sim, por fim minha Amiga/dalite foi embora. Fechou a porta com o focinho murcho. Escapuliu como se nada devesse. Após alguns dias de estorvo para comigo ela se foi com o “rabinho entre as pernas”. É verdade que os antibióticos ajudaram muito. Entretanto, toda ajuda é válida quando o que está em jogo é o fim de uma agonia. Foi nesses dias que pensei o quanto a gente não valoriza quando nossa saúde quando está em pleno viço. Parece que só aprendemos a valorizar nosso pulsar quando riscos afrontam nossos caminhos. Ah, mas não quero sequer me alongar nesse blá, blá, blá de amigdalas. Ou mesmo Amigdalite. Importa que ela se foi. Só que não é um ir e acabou-se. É sempre um ir com arzinho de ainda volto. Que volte! Enquanto existir antibióticos e bisturi, não temo a minha Amiga. Fico por aqui, pois esta visita já me encheu e já deu o que falar. Calo, portanto, como cala um defunto durante o fim de uma agonia.

16 setembro 2007

 

DIÁRIO DE UM AMIGDALITANDO (2)


V.

Acredito que a pior parte já passou – embora a madrugada tenha sido terrível, não dormi bem, acordando inquieto, rolando de um lado a outro, febre ameaçando, a tosse me açoitando – compulsiva. O corpo, então quente, com um prelúdio de uma convulsão, a cabeça a pesar.

VI.

Mas a pior parte já passou, sim. Hoje já consegui sair de casa. Arrastando-me lento – a passos lerdos. Vagarosos. A voz ainda está rouca, mas nada que dê para assombrar alguém, ainda que assim, como se fosse um alto-falante levemente furado. Sinto ainda um pouco da ardência nas amigdalas. Acredito que a fase terminal da minha amiga amigdalite se aproxima. Já começo a abrir a porta para que ela se vá e venha mesmo só no ano que vem. Abro a porta como se fechasse os olhos durante a despedida de uma pessoa que nunca chegou e ninguém sabe de onde veio.

15 setembro 2007

 

DIÁRIO DE UM AMIGDALITANDO



I.

AMIGDALA: 1 Anat Cada uma das glândulas ovóides, em forma de amêndoa, existente à entrada da garganta, entre os pilares do véu do paladar; antíada, antíade; tonsila; tonsilha; amígdala palatina. 2 Nome de várias estruturas irregularmente elipsóides. Var: amídala. A. do cerebelo: massa arredondada que forma parte do cerebelo na sua fase inferior. A. faríngea: massa de tecido linfóide entre os orifícios nasofaríngeos das trompas de Eustáquio, que é comumente mais bem desenvolvido nas crianças, atrofiado nos adultos e sujeito a hipertrofia e formação de adenóide, especialmente em crianças. A. lingual: massa linfóide na base da língua. A. palatina: o mesmo que amígdala, acepção 1. A. tubária: massa de tecido adenóide ao redor da extremidade faríngea da trompa de Eustáquio e dentro desta ao longo de sua parede média.


II.

AMIGDALITE: Inflamação das amígdalas; tonsilite, esquinência, antiadite.


III.

Mais uma vez minha amiga – de já algum tempo – Amigdalite veio me visitar. De início ela me entrou disfarçada de gripe. Deu-me um drible, tirou sua máscara e mostrou-se. Estou com a garganta coisada. Sim coisada. Nunca aprendi a externar o que se sente quando se enfrenta essa inflamação na garganta. São sintomas chatos, sensações importunas. Já há dois dias que estou em casa de molho, como se fosse uma roupa lavada no inverno, que demora a secar. No ano passado tive a mesma crise, em novembro. Neste ano ela adiantou-se. Vadia. O pior é que a triste dessa amigdalite mexe tanto com o corpo da gente, que apesar de ser na garganta não dá ao menos para concentrar-se ao em escrever ou ler bem.


IV.

Dizem que todo mal traz um bem. Recordar às vezes também é ficar bem. Algo me deixou bem ao ver ontem minha mãe arrumar minha cama como há muito não via. Lembrei dos meus tempos de criança, quando após o banho e a janta ela estendia o lençol e o travesseiro para que eu fosse dormir. Ontem aconteceu igual. Por eu estar um pouco frágil devido à dor de cabeça e à febre, ela se prontificou em arrumar minha cama. Percebi o mesmo amor e doçura de anos antes. Naquele instante acreditei mesmo que o amor das mães para com os filhos não envelhece nem se modifica, apenas se conserva a seu modo, ainda que diante de um filho com os pêlos estourando na cara ou não, com as amígdalas inflamadas ou não.

14 setembro 2007

 

E agora? Somos nós que temos algo a dizer a Calheiros ou ele que tem algo nos dizer? Tive a impressão de que a “absolvição” de Renan resulta de uma boa parte dos que têm “rabo preso” nessa história, ou seja, pode ser que tenha talvez não o dedo, mas a mão completa de alguns tantos outros corruptos dali... E vocês que é que acham?

05 setembro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


DA PERFEITA MENTIRA

A pior mentira é sempre
aquela que invade uma verdade
como uma manhã de sol
que desabrocha em garoa.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?