21 maio 2008

 
Pintura"Desintegração do sol", de Muguel Dhera
Aí, abaixo, um belo poema para o mês mariano. Devido a alguns detalhes não pude fazer com que sua forma estrutural saisse fiel (rsrs). Tudo bem não vem ao caso o motivo, sintam estas palavras, elas são belas. Sintam.


TARDE DE MAIO

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior deseus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traços cômicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, porções de minh'almanunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobrezasem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.Eu nada te peço a ti, tarde de maio,senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,sinal de derrota que se vai consumindo a ponto deconverter-se em sinal de beleza no rosto de alguémque, precisamente, volve o rosto, e passa…Outono é a estação em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,já então espectrais sob o aveludado da casca,trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebrescom que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carrofúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstitolutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?Se morro de amor, todos o ignorame negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;não está certo de ser amor, há tanto lavou a memóriadas impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,perdida no ar, por que melhor se conserve,uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

(Carlos Drummond de Andrade)

17 maio 2008

 

Caricatura “Kafka”, de Gil Tokio


PELOS CAMINHOS DE KAFKA

Hoje, ao acordar, tive a impressão e mesmo senti algo kafkeano. Isso devido à invasão de baratas que tenho observado em meu quarto, há alguns dias já. Sendo que hoje, ao levantar da cama, de cara deparei-me com uma barata que, emborcada, agonizava demasiadamente. Mesma imagem que o escritor tcheco Franz Kafka usou para narrar a agonia de seu protagonista de A Metamorfose, Gregor Samsa:

“Estava deitado sobre suas costas duras como couraça [...] Suas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto do seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos”

Foi esta mesmo a imagem. Vi aquele pobre inseto todo se retorcendo, numa aflição tremenda. Não sei se para desemborcar-se, ou mesmo para pedir ajuda a alguém. Era, de fato, uma barata que ralava as costas ao chão para tentar se pôr ao avesso, aflita. Eu, sim, bem que poderia ajudá-la. No entanto, não o fiz. Primeiro, porque não me imagino às sete da manhã pondo as mãos em um bicho horripilante. Depois, acredito que todos (inclusive os bichos) temos direito a uma agonia particular e egoísta. Deixei, então, a barata sofrendo ali, nauseabunda, no canto dela. Desesperada. (Tomei banho. Tomei café. Fui trabalhar. Enfrentei o caminho solitário da ida. Cheguei ao trabalho. Estresse. Muito. Enfrentei o caminho solitário da volta. Cheguei em casa. Recolhi-me à mesa.) Fui ao quarto. Lá estava ela. A barata. Morta. Estática. Suas finas pernas não mais reagiam. O corpo já não implorava mais por nada, nem a ninguém. Não prendi bem meu olhar ao aspecto moribundo do inseto morto. Saí chutando-o. Devagar. De meu quarto ao quintal. Pela sala, pela cozinha. Chutes secos e leves. De bico.

Pus, agora a pouco veneno em meu quarto: para matar essas inquilinas (as baratas) sem contrato que vivem por aqui. Quero dar mais chutes amanhã, quando já houver percorrido o solitário caminho da ida e da volta do trabalho, e assim, quando chegar em casa, sair chutando, lamentavelmente, as baratas mortas: recolhidas em seus caminhos da morte: que são, afinal, os caminhos mais egoístas e particulares.


12 maio 2008

 

Coisas sem volume ou tamanho de livro

É insuportável ter que admitir que pessoas que convivem comigo há tanto tempo não conhecem bem meus costumes, meus gostos e, sobretudo, minhas paixões. Antes de mais nada, quero alertar que não sou mal agradecido. No entanto, ontem, no dia do meu aniversário, ninguém da minha família me deu um livro. Ora, não entendi bem. Todos sabem que vivo mais pelos livros do que por mim próprio. Todos sabem que preciso mais de livros do que o próprio ar, da própria água, do que minha própria existência. Recebi presentes simbólicos que aqui não quero tratá-los. Trato aqui da minha indignação por não ter ganhado livros. Diante disso, ocorreu algo de engraçado, hilário mesmo. As pessoas vinham me entregar os presentes e eu sequer olhava para os rostos destas pessoas. Para onde eu olhava? Ah, lógico que para o formato dos presentes, para ver se o volume ou tamanho se aproximavam, ou pelo menos eram compatíveis, com os de um livro. Decepcionava-me de longe. Não eram. Mas como nessas situações sempre se tem que obedecer e levar em conta a boa regra social do “pelo-menos-lembrou-de-mim”, assim tive que o fazer. “Agradecido”, dizia com o som saindo entre os dentes. Disfarçava. Abraços e beijinhos de “Feliz aniversário”. Fingia que estava tudo bem, que o presente então recebido tinha a equivalência da importância que um livro tem pra mim. Olhando por outro ângulo, talvez eu até esteja exagerando. Quem sabe... Porém, se eu tivesse ganhado ao menos um livro, um livrinho que fosse, eu estivesse menos indignado com o acontecido. Mas tudo bem, a vida segue. Parafraseando Drummond: hoje não se ganha livro, amanhã se ganha, a vida é isso mesmo meu filho. Sempre.


07 maio 2008

 

Na solidão dos cem anos


Acho interessante quando um escritor mantém sua originalidade e dela sabe usufruir. Percebo isto em Gabriel Garcia Márquez, pois estou enfurnado nas primeiras páginas de Cem anos de solidão. (Tá bom, não precisam me apedrejar, eu e minha velha mania de comentar livros antes mesmo de terminar de lê-los.) Confesso que muitas passagens/trechos deste livro me cativaram e até mesmo me surpreenderam.

Ao ouvir, vez por outra, o nome desse escritor colombiano, admito que não me senti ao menos atraído por ele (e sobre seu sobrenome, que diria?). Porém, como se diz “deu a louca!” Resolvi encarar, por curiosidade mesmo, a leitura de algum de seus livros. Já havia lido algo sobre essa centena de anos solitários. Por que não lê-los? Questionei-me. Decidido, resolvi fazê-lo.

Estou curtindo a leitura. Linguagem boa. Gabriel soube domar a prosa fantástica sem se derramar ao discurso frouxo ao qual todo escritor que adere ao fantástico incorre. Bem, como eu não poderia deixar de partilhar com os leitores destas minhas Linhas Desassossegadas, transcreverei um fragmento que achei muito bem escrito, quando a personagem Rebeca se esbalda em seu hábito de comer terra:


Nas tardes de chuva, bordando com um grupo de amigas na varanda das begônias, perdia o fio da conversa e uma lágrima de saudade lhe salgava o céu da boca quando via as faixas de terra úmida e os montículos de barro construídos pelas minhocas no jardim. Estes prazeres secretos, vencidos em outros tempos pelas laranjas com ruibarbo, irromperam num desejo irreprimível quando começou a chorar. Voltou a comer terra. Da primeira vez, fê-lo quase que por curiosidade, certa de que o gosto ruim seria o melhor remédio contra a tentação. E, com efeito, não pôde suportar a terra na boca. Mas insistiu, vencida pela ânsia crescente, e pouco a pouco foi satisfazendo o apetite ancestral, o gosto pelos minerais primários, a satisfação sem par do alimento original.


06 maio 2008

 
foto: Relógio de Flores (Garanhuns-PE)

Definitivamente minha cidade é perfeita. Já estamos sentindo os primeiros vapores frientos do inverno, que antecipa-se sempre em um mês por aqui. Que ele venha sem pressa, sem atropelo. Espero apenas que ele venha manso, como uma centopéia que se contorce com a pisada de um pé distraído. Ou como uma nuvem que vai mijando chuva aos poucos, mesmo.

01 maio 2008

 

Foto: Marcel Proust

Li uma Biografia (Escritores de sempre) sobre Marcel Proust. Este escritor francês nasceu em Paris, em 10 de julho de 1871. Sua mãe era de família judia, rica e culta; seu pai era médico. Desde a infância Proust padecia com crises de asma. Ainda no colégio, surge sua vocação literária. Cedo começou a freqüentar os salões parisienses. Durante alguns anos Proust dedicou-se a traduzir e comentar o crítico de arte inglês John Ruskin. Em 1905, a morte da mãe o deixou profundamente abalado.

A obra de Proust foi, enquanto ele viveu, objeto de grandes controvérsias entre os que a consideravam genial e os que a proclamavam impossível de ser lida. Hoje é reconhecida como fundamental na literatura francesa. Proust morreu de pneumonia em novembro de
1922. De qualquer sorte, pude perceber sua grandiosidade enquanto escritor. Enquanto homem também, de personalidade afeita pela sensibilidade à vida. Eis que transcreverei trechos de alguns romances seus:


A princípio, sonhamos conquistar o coração da mulher amada; mais tarde, perceber que já possuímos o coração de uma mulher constitui motivo suficiente para nos enamorarmos dela. Contudo, na idade em que alguns indícios levam a crer que a admiração da beleza feminina, porquanto no amor o que procuramos é sobretudo um prazer subjetivo, deveria suplantar todos os outros sentimentos, o amor pode nascer – o amor mais físico – sem que tenha havido nenhuma desejo inicial. A esta altura da vida, já fomos várias vezes atingidos pelo amor que agora não evolui mais sozinho, conforme seus desígnios desconhecidos e inevitáveis, ante o assombro e a inércia do coração.

(No Caminho de Swann, 1913)

Podemos identificar em qualquer obra de arte aqueles a quem o artista mais odiou, e ai dela, mesmo aquelas a quem o artista mais amou. [...] Assim, quando procuramos generalizar nossa dor, escrevendo sobre ela, encontramos certo consolo, talvez em virtude de uma forma abrangente, escrever significa para o escritor uma atividade tão sadia e necessária, cujo cumprimento o alegra, quanto para o desportista são os exercícios, o suor e o banho [...] Mas, sob outro ponto de vista, a obra é um indício de felicidade, porque nos ensina que em qualquer amor o geral jaz ao lado do particular, e também nos mostra como passar do segundo ao primeiro com a ajuda de uma ginástica que, negligenciar-lhe a causa para aprofundar sua mais tarde, mesmo no momento em que amamos e sofremos.

(O Tempo redescoberto (obra póstuma), 1927)

O escritor costuma dizer: “meu leitor” apenas pelo hábito contraído na linguagem arificial dos prefácios e dedicatórias. Na verdade, cada leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra do autor não passa de uma espécie de instrumento ótico que ele oferece ao leitor para permitir-lhe que consiga discernir o que, sem tal obra, provavelmente não teria visto dentro de si. A conformidade entre o íntimo do leitor e o que diz a obra constitui a prova da verdade desta, e vice-versa...

(O Tempo redescoberto (obra póstuma), 1927)


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