26 fevereiro 2007

 

foto: Helder Hortta


O MUNDO DE ALINE

Ela gosta de brincar com as coisas. Apenas isto. Não com brinquedos propriamente. Coisas, apenas. Muda o nome das coisas, sempre. Quando não é possível inventa. Às vezes enxerga as pessoas como animaizinhos, e alguns animaizinhos como gente grande. Aqui não há espaço para contar todos os feitios de Aline, pois as suas muitas histórias nunca cessarão. Mas há fatos que não deveriam passar em silêncio. Um dia falou que um beija-flor estava fofocando alguma coisa à bromélia, e esta, por sua vez, não gostou do que ouviu e logo mudou de cor. Disse isso ser uma coisa grave. Ela conta que à noite sonha com borboletas em seu quarto, brincando de pique - esconde. Certa vez, Aline falou ao seu tio João que “na televisão só passa coisas que a gente não entende direito”. Há dois dias ela matou um pardal para querer arrancar as asas dele para fazer um avião.

Aline brinca de ser coisas. Brinca de ser fruta, no galho da mangueira do quintal de sua casa; de ser chuva no rio que atravessa o caminho da cidade; de ser terra, e se atira ao chão para duelar com as pedras. Chama o sol e a lua de covardes por viverem tão distantes das mãos dela. “Deveriam ser como o céu, pois levanto minhas mãos e o tenho”. Ela chama a própria chupeta de pirulito de borracha; as nuvens, algodãozinhos do céu; as casas, gaiolas de tijolos. Ela diz que “existem outros mundos parecidos com esse que a gente vive”. Seus pais ficam quietos. Estáticos. Até que gostam desse mundo que Aline (n)os apresenta. Mundos possíveis. Coisas possíveis.

Quantas coisas existem e que ainda precisamos descobrir com Aline! Principalmente, no que diz respeito ao modo com que devemos brincar com as coisas, mesmo inventando estas, dando novos nomes, ou sonhando com coisas novas. Apenas isto, sempre.

25 fevereiro 2007

 

ENCOBERTAMENTE

Acho que por falta de quedas ela se sente quase em paz. Um pouco leve. Dói a ela aceitar o que a engole. No entanto, suas mãos não suam. É coisa tola. Não aceitou que o simples a incomoda. Mas está aí. Firme. Se algo a incomoda, por que não faz barulho? É moda calar? Não se sabe. Ela vem. Sem cicatrizes nas mãos. Leve. Sem aceitar nada. Ela cala. Sem está aí. Sem engolir nada. Firme.

23 fevereiro 2007

 

SONORA

A minha forma de fazer barulho é ficando em silêncio. Quando estou em silêncio gosto de ficar gritando. E percebo que o silêncio vai embora. Ops! Mas quando se grita ou se faz barulho, pra onde o silêncio vai?

21 fevereiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


FADIGA

O sono é só um
estado que nosso corpo
precisa para dizer
que não é máquina.

19 fevereiro 2007

 

ENCURRALADO


Percebo que os meus laços com a chuva são, sobretudo, misteriosos. Sim, percebo. Não sei ao certo que sentimentos me vêm quando ela explode, quando de repente parece amansar tudo; pois é neste momento, então, que me vem as mais estranhas sensações, as quais ainda não sei como chamá-las. Hoje à tarde mais uma vez choveu. Fiquei encurralado no meu quarto, em meio aos livros. A chuva desabava com peso. Fui logo invadido por pensamentos desordenados. Procurei-me nas nuvens, desobedecendo minha identidade, infligindo meus próprios mandamentos. “É do coração que vêm as más intenções” (Mt 15, 19). Escutar meu coração hoje seria suicídio. Desprezá-lo hoje foi a maneira mais pacífica de fazer de conta que a chuva não incomodava nem a mim e nem a ele. Agora anoitece. Aos poucos. Fico a olhar pela janela, enquanto a chuva se despede dando o último adeus durante o silêncio do início da noite. As sensações se vão. Aos poucos. Misteriosamente.

17 fevereiro 2007

 

Pintura de Salvador Dali



COMO BONECOS DE AREIA


Eles se apregavam como cães. Logo no começo da noite. Eu via tudo. (Quando criança eu gostava de brechar o casal de vizinhos, recém-casados.) Primeiro, se beijavam desesperadamente. A saliva escorria pelo canto da boca de ambos. Pareciam brigar ao atirar-se um contra o outro. Vadios. Com extravagâncias. Depois, como se estivessem um assaltando o outro, começavam a despir-se, revezavam entre si, alternando a cada peça de roupa tirada. Ele partia pra cima dela com uma tara descomunal, animalesca. Ela só fechava os olhos e ia caindo lentamente no sofá, esperando - e era sempre assim - que ele colocasse logo o dedo, devagar. Iniciava-se, então, uma sessão de acanhados gemidos que invadia toda a casa. E eu ficava por ali mesmo, trepado no muro, espiando do lado de fora, espreitando por entre as estreitas brechas da janela entreaberta.

“Coloca agora”, ela pedia quase sussurrando. E ele nem pensava duas vezes. Abria-lhe as pernas e metia. Passava antes a língua. Os gemidos cresciam com força. Confesso que tinha hora que aquilo me dava medo. Às vezes eu pensava que ela estava passando mal, ia morrer, sei lá. Mas era bom assim mesmo vê-la sofrer com tanto prazer. Ela gostava da dor. Parecia. Pois ficava “vai, vai, vai...” Lembro das caretas que ele fazia naqueles momentos, eram - sobretudo - engraçadíssimas. Cômicas. Ele aparentava um peão de rodeio em cima de um touro leso! Desembestado. Logo suavam. Ficavam peguentos. Esfregavam-se suados. Ela tinha mania, enquanto ele a penetrava, de ficar chupando o dedo polegar dele. Nunca que eu entendesse aquilo. ( Parecia criança chupando pirulito.) Não tirava o dedo dele da boca.

Eu ficava acompanhando tudo. (Jantava logo cedo pra não perder a hora.) Eu achava o máximo o momento em que iam gozar. Ela torcia os beiços, esperneava. Ele dizia “vou gozar, vou gozar”. Dava-me vontade de rir. Se aquilo aparentava ser uma coisa tão boa, como o final acabava por ser tão agoniado? Gozavam. Os corpos pareciam se desmanchar como os bonecos de areia que eu fazia no pátio da escola e depois danava água em cima. Era incrível como depois daquilo os corpos perdiam aquela vibração de segundos antes. Ficavam estáticos. A placidez os ganhava. E eu voltava pra casa, alumbrado. Arrebatado. Queria fazer aquilo também. Esperava o outro dia, pensando em minha colega de classe que sentava logo à minha frente. Iria chamá-la pra brincar comigo, fazer bonecos de areia, com o intento de desmanchar-me em cima dela. Como um cão. Desembestado.

14 fevereiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -



SOB SERPENTINAS

Se o amor não
tirasse férias,
não existiria
o carnaval.

12 fevereiro 2007

 

BRINCAR É... , EU PRECISO.


Comecei a semana pensando em brincar com as formigas. Tenho uma leve curiosidade de saber o tamanho de suas forças. Quase consegui acompanhar uma ontem. Não fui tão rápido assim. Habituei-me a brincar com coisas simples porque nunca me alertaram que é nelas que residem certos mistérios. Deu-me vontade outro dia de brincar com rãs. Isso mesmo, rãs. Essa vontade me deu ao passar por um esgoto onde havia um bocado delas cantando. Não sabia que música, ou tom.

Descobri certas verdades que se escondem nas brincadeiras. Verdades discretas. Acho que quando o homem perde o hábito e aquele entusiasmo que só as crianças têm para brincar com as coisas, o indivíduo já se pode considerar dentro de um processo patológico. A sisudez adoece o homem. Há um tempo atrás, na falta de alguém com quem brincar, eu brincava com o vento. Polícia e ladrão. Esconde-esconde. Amarelinha. Qualquer coisa que desse sentido à cumplicidade lúdica entre nós. Ao poucos venho percebendo uma mudança. Ultimamente o vento tem passado por mim sem dizer nada.

Hoje choveu. A tarde toda. Pedi para brincar com a chuva. E ela ficou quieta. Só me respondeu com chuva. Chovendo. Fuzilou meu corpo, deu cambalhotas, sorriu. Banhou-me sem me dizer nada. Fiquei acuado rente a um poste, ladeado por poças que brincavam de virar espelhos para o céu. A chuva só brincou com o chão e os telhados, fazendo barulho. Depois, foi-se, ainda sem nada me dizer. Em vista disto, não sei mais do que brincar hoje à noite. Talvez brinque sozinho mesmo. Ou até mesmo com o meu coração. Não sei. Talvez brinque com o coração dos outros. Não emprestarei o meu. É ruim quando os outros brincam com o nosso coração.

09 fevereiro 2007

 

COISA DO DIABO

“Essas coisas são boas
e úteis para os homens”
(Tito 3,8)

Meus dedos ficavam deslizando sobre a mesa. Soltos. Um pouco trêmulos. Já havia baixado a vista duas ou três vezes. No entanto, o que existia de mais vil em meu instinto me induzia a olhar o hastear da micro-saia da garçonete. Eu não tinha nem 15 anos completos, nem tampouco o costume de andar em bares - quanto mais agüentar uma mulher bem empinada e de pernas bem feitas passando a todo instante em minha frente, afrouxando o sorriso. Percebia o coração acelerar ao olhar o remexido da saia vermelha pra lá e pra cá, deixando por uma brecha a calcinha quase exposta. Vinham-me à mente os chavões de minha mãe: “essas coisas Deus castiga”, “é coisa do diabo”, “quando aparecer essas coisas desvie a vista”, etc. Não podia negar o desejo que tinha de enfiar a minha mão por baixo daquela saia e só tirá-la quando a vontade fosse embora. “Todo homem deseja essas coisas!”, alertava-me um colega ao lado. Vinham-me à alma as máximas de minha mãe... Começava pensar indignado:

- Mas com tanta gente desempregada, passando fome, doente, com frio, com sede, e tal! Deus vai deixar de olhar por esse povo pra vir a me castigar, só porque eu penso em meter a minha mão um pouquinho dentro da calcinha da garçonete?! – Inconformava-me com isto. Não havia sentido.

Tomava, então, mais dois ou três goles apressados de wisky; como que se quisesse extinguir o desejo de socar minha mão no lugar que não saía da minha cabeça. Goles inúteis. Aumentava mais ainda o meu apetite carnal. Tara. Outros homens do bar disputavam comigo - sem que um percebesse o outro - o fitar dos pés até a cintura da garçonete. Excitava-me a goles largos. Também fumava! (Pensava ser um modo de afirmar minha macheza no meio dos outros, que aparentemente se achavam mais do que eu, pois se sentiam mais homens por terem as barbas mais grossas.) Contudo, eu acabava por ficar em meu canto. Embevecido. Dividido em pensamentos, ou melhor, em desejos. E se Deus me castigasse? Mesmo assim eu queria passar a mão na garçonete!!! Acabrunhava-me. Estava sendo vigiado, lá de cima alguém me espreitava. Era “coisa do diabo” mesmo.

07 fevereiro 2007

 

O AMOR NASCE DO SUSTO


DIALÓGICA I

(...)

- Não me amas mais?
- Acho que não.
- Acha que não?!
- É.
- Não o entendo.
- Amor também se gasta. Pelo menos enferruja, penso.
- O meu não. É inoxidável.

(breve silêncio)

- Há algum tempo me dizia que o que sentia era eterno...
- Dizia. Não penso mais assim.
- E como pensa agora?
- Não sei ao certo. Ultimamente não ando pensando em nada.
- Como se atreve a deixar as coisas entre nós assim, soltas?
- As coisas precisam de liberdade.
- Não lhe entendo!
- Preciso lançar as sementes da liberdade entre nós.
- Mais outra vez não estou lhe entendendo!
- Releve, entender demais nos dói.

(outro breve silêncio, ela coçando a cabeça)

- Não me levas à sério mesmo.
- Isso pode lhe ser um bem.
- Nunca. “Isso” me machuca. E o que machuca pode ferir...
- Feridas cicatrizam, saram.
- Só quem pode responder por isto é o tempo.
- Não sei.
- Como não sabe?
- Às vezes somos nós mesmos quem determinamos a duração de nosso sofrimento.
- O problema está nesse “às vezes”!
- O problema está no monstro que a gente cria diante das situações...
- Como pode ser tão frio?!
- Todos nós herdamos um pouco das estações, acredito.
- Não agüento mais... Acho melhor ir embora... Difícil agora é saber por qual caminho.
- Deve saber, somos responsáveis pelos nossos caminhos.
- Mais uma, é?
- Depende de quanto você absorver.
- Cansei!

(foi-se pela rua, soluçando, face lacrimejada)

05 fevereiro 2007

 


- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


TESTEMUNHA

O que seria das flores
se não fosse
o orvalho
para testemunhar
seu choro
todas as manhãs?

03 fevereiro 2007

 

FEBRIL


Febre. Suor descendo pelo pescoço. A náusea ainda não havia lhe tomado por completo. Levantou-se da cama tateando a parede. Procurando o interruptor. Esfregava a mão no reboco cru. Arranhava a palma da mão. Aspereza de cimento velho. Tentava chegar à cozinha, enfiar água na goela. Esfriar o corpo, ou aquecer; não sabia. Empurrara a porta, pesada. Ia se arrastando, levantando uma leve poeira no corredor da casa. Não era bem madrugada, mas o pardejar da noite já encostava. Estava com dor nos ossos. Parecendo velho. Trazia as mãos no espinhaço, torto. Olhos remelados, boca murcha, barba crescida. Quase nada enxergava, não tinha achado o interruptor do quarto. Ia vagaroso pela estreiteza do corredor escuro.

Puff...a canela no tamborete que se achava rente à mesa da cozinha. Grito preso. Respiração de burro. Força de formiga. Em que lado estaria a jarra d’água? Nem lembrava. Três passos mais adiante: Paft! a cara lascada no armário. “Puta que pariu”, fugiu suave por entre os dentes. Desejava uma caneca de água. Sede braba. Homem com sede fica mais bruto. Os olhos conseguiram captar o interruptor da cozinha. O dedo indicador da mão esquerda o cutucava. Luz na cara. Primeiramente, escolhera o copo menos sujo que se achava na pia. Depois, mancando de uma perna se dirigira à jarra de barro encimada de tijolos semi-rachados ao chão.

Descia então o copo no orifício da jarra, à busca de água. Não se ouviu o “ti buuumm!” Nada de água. Jarra oca. (O suor já havia provocado um leve odor nos sovacos. Cebola mal-conservada.) Crescia a necessidade de água, ainda que não fosse pra tapear a sede, que fosse ao menos pra lavar o rosto. A opção seguinte seria a torneira, que, depois de aberta, não titubeou em soprar um ar seco. Nada de água. Nem na geladeira nem tampouco no tanque se encontrava um pingo. Decidira voltar ao leito, puxando-se. Apulso. Com o corpo ardendo. Mais uma vez esfregando a mão na aspereza da parede. A mão já quase na carne-viva tateava o percurso de volta à cama; com a garganta seca e a língua enxuta. Costas molhadas, cabeça dolorida. Deitava-se novamente no leito, descansando as pernas bambas, o corpo semi-vivo.

01 fevereiro 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


MENTITA

Na mentira
encontra-se uma
verdade
do que não existe.

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