28 janeiro 2008

 



IMOLAÇÃO DOS OSSOS (Romance)
Capítulo 5


Tudo o que se faz por amor é infinito. E é o fim de todas as coisas desistir dele. (Ouve apenas o que digo, e esquece o que não foi dito ou declarado). Estou desesperadamente vivo. É um sinal de cor. A cor que permanece nos olhos da manhã. Fico – diz uma voz. Envelhece – fala-me as rugas. Pois envelhecer é deixar de gostar de tudo. Existe algo de mortal em deixar de gostar das coisas, dos lugares, das pessoas. Por isso deixo desplanejar-me. Morro um pouco a cada escolha. Porém, nem toda escolha é a certa: nem toda roupa esconde a nudez, nem todo cálice contém vinho. E tudo isto me transborda: a madrugada que não cessa, o palco que não recebeu o artista, a leve brisa que encerrou a tarde, a noite egoísta a qual Deus se escondeu roubando a claridade do dia. Pois, quando anoitece para onde Ele leva a cor diurna?

Instante: posso chamar sobre o que acontece entre o que é escrito e a conseqüente leitura.

Quero um perfume que me faça nascer. Depois... incertezas. Ter direito a lançar cavalos não me assegura um bom trote. Escutar relinchados não me assegura uma boa audição. (Apesar de eu existir como um bicho que durante algum tempo viveu a segurar passarinhos).

Agora de novo são instantes.

Antes de meu pensamento existe uma ponte. Tempos atrás era uma morada. Tinha um riso que atravessava meus lábios. Um corte na minha nuca que alojava um brilho cristalino. Um afresco. Girassóis abertos. Um disco ultra-metálico. A saber, pães partidos em doze pedaços. O pão como fome infinda. Um teto sem base nem contorno. Eu acreditava que contorno era sempre a chegada de um amor em minha vida. Pois havia uma placa que me dizia: “volte!” E foi nas minhas idas e voltas que aprendi que o amor nunca foi um fim ou uma chegada, mas sempre um caminho.

– Escrevo para fugir dos dias. Amolo a faca cega nos penhasco do tempo.


Vejo lâminas e não são metais. Vejo o sonho, mas não existe o sono. Vejo as nuvens, mas não existem as chuvas. Vejo a estrada, mas não existem as curvas. Tivesse eu olhado – se necessário fosse – a pedra exposta ribanceira abaixo, tivesse eu sabido o que sou agora, tivesse eu presente no que me lês, fosse o fim talvez de tudo que é certo, de tudo que me foge sem alcance. E não me diga que o amor é algo alcançável! Ele é a estátua, a forma de mármore na praça, a agulha fincada na mão que abençoa as gentes, o aceno último do lenço que tarda, o encontro entre o que existe e o que goza. Um aborto nas veias. Uma chusma. Borboleta de asas cansadas, exaustas: e que nunca sabe aonde vai.

17 janeiro 2008

 
foto: praia de Jatiúca - Maceió


Em Maceió. Recolhido. Há alguns dias já. Desta feita, é engraçado perceber o quanto às vezes é bom se sentir um índio fora de sua tribo. Uma caravela sem mastro. Um sapato sem meia. Lendo sempre. Agora, Crime e castigo, do russo maior, Dostoiévsky. Confesso que poucas páginas por dia. Dou-me mais à observação dos que por aqui moram. Ou mesmo aos lugares que aqui que me parecem anti-poéticos. Ah, mas não só os lugares, a começar pelo clima, pois há dias me castiga esta calor esbravejante – que parece querer torrar meu cérebro. É. Esse calor quando alaga meu corpo de suor me causa uma sensação de provocação, algo mesmo equiparável às náuseas sentidas por Raskolnikóv no Crime e castigo. (...) Mas bons esses dias por aqui. Nem tudo é só tédio. A capital alagoana apresenta um bom repertório para os que, como eu, preferem à noite ao dia e não são bichos. Que me sejam dias dormentes esses. Embalados. Sem nó na goela, sem guerra na zona fronteiriça da paz. Apenas um furo, no lado esquerdo, distante.

14 janeiro 2008

 

foto: Alberto da Cunha Melo


Neste post, 3 poemas de um grande poeta que nada deveu a outros grandes de nosso Brasil. Falo do poeta Alberto da Cunha Melo (1942-2007). Poeta este que o Brasil não conheceu (ainda?), embora recentemente seu último livro, Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas Inéditos (2006), tenha ganhado o reconhecimento e um conseqüente prêmio da Academia Brasileira de Letras em 2007, poucos meses antes de sua morte. Alberto nasceu em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Foi Sociólogo e Jornalista, tendo se envolvido em agitações culturais mais tarde na capital pernambucana. Foi apontado como uma das vozes poéticas mais originais na dita “Geração 65”, apresentada pelo poeta e crítico César Leal (ainda vivo), nas páginas do até então muito vigoroso Diário de Pernambuco. Publicou livros com indiscutíveis valores poéticos, tais como: Dois Caminhos e Uma Oração (2003), que engloba três títulos: Meditação sob os Lajedos, de 2002; Yacala, de 1999; e Oração pelo Poema, de 1967. Sem delongas, vamos aos poemas:


RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.



CONDENSAR/CONCERTAR

A vida aqui fala bem claro,
mas sem a eloqüência da lágrima;
como a renda, como a poesia,
é uma linguagem concentrada;

é cloro na água da piscina
da cobertura, lá em cima,

onde Clara, uma pós-donzela,
posa nua para o helicóptero
que faz evoluções sobre ela;
e a luz do sol, como toalha,
só existe para enxugá-la.


ORGASMO

Todo corpo, em seu esplendor,
divide em duas esta vida,
mas este êxtase existe mesmo
para ocultar uma descida

da carne, no único momento
em que do cosmo é instrumento;

truque do eterno é todo amor:
toca por baixo o fogo alto
que aquece o sonho ao sol se pôr,
porque logo devolve aos dois
o nada de antes e depois.

10 janeiro 2008

 

ANÊMONA, QUER DIZER, “JOANINHA”


Foi desastroso quando me informaram que se chamava joaninha. Há muito eu já estava acostumado a chamar de anêmona. Foi o primeiro nome que intuí chamar quando vi aquele bichinho por sobre uma folha de jasmim no jardim de minha casa, num dia ensolarado. Achei bonito o nome (anêmona), que havia escutado não sei onde e por não sei quem. Então dei pra chamar assim aquela joaninha. Dissera-me que não. Que anêmona era um bichinho que vivia no mar, que tem apenas um buraco em seu corpo que serve ao mesmo tempo de boca e de ânus. Eu ainda não sabia o que era ânus. “É o lugar por onde sai o cocô”, achei estranho. Mas isso não seria tão estranho quanto eu ter que deixar de chamar aquele bichinho de “anêmona”. Passei a achar um desrespeito terrível ter que chamar por outro nome aquela amiguinha que já há alguns dias eu passara a ter guardada em uma caixa de fósforos. Não sabia se iria me habituar a chamá-la de joaninha. De instante e instante chegavam-me meus pais: “joaninha é uma coisa, anêmona é outra”. Eu não sabia que podia chamar também os animais de “coisas” ou “outras”; mas eles eram enfáticos: “joaninha é uma coisa, anêmona é outra”. Foi em um daqueles dias que uma vizinha, D. Quitéria, me informou que uma única joaninha poderia pôr em média mais de mil ovos em cada desova. Achei injusto. Sim, injusto. Pensei: como uma criatura daquele tamanhinho pode pôr tão grande número de ovos, e um animal maior que ela e que também põe, como é o caso da galinha, conseguir colocar minguados números de ovos? Havia coisas que eu não entendia bem. Ou talvez não me explicassem bem. O que acontece é que insistiram para que chamasse a “anêmona” de “joaninha”. Assim o fiz. Duramente. Não havia mais antes de dormir o “boa noite, anêmona!” Passou a ser “boa noite, joaninha!” Deu-se um bom tempo. Corridos. Aquele bichinho morreu. Abri um dia caixinha e ele estava durinho; patas inertes (as seis), viradas pra cima; asinhas retraídas. Restou-me apenas a caixa de fósforos vazia e um longo eco que ainda perdura mesmo com a caixa fechada: “boa noite, joaninha!”

03 janeiro 2008

 

Pintura "os sapatos" (Van Gogh)



IMOLAÇÃO DOS OSSOS (Romance)
Capítulo 4


Invento um pouco de tudo. Procuro (*) no que não falo. Mantenho um encontro brusco com o que desprezo. Desprezar é apagar o que existe porque o aceitamos. (*) não poderia ser uma ausência em minha vida. Primeiro, porque as pessoas que amamos nunca nos fogem, salvo sem o consentimento de nossa alma. Depois, porque a ausência sempre deixa os rastros necessários para que nunca percamos de vista a outra pessoa. Ainda que ela própria perca-se a si. Como explicar tal fato? Na inexplicação! As coisas inexplicáveis são a maneira mais fácil de explicar o que não se explica. O que não se sujeita. O que segue. A algo. Ponto estreito. Nó que se extingue. Cadarço quebrado. Sujo, nas pontas.

Sei das pessoas que se vão. O sei pouco. E quando o admito, modifico-me. Como se nada me viesse à lembrança. Aquela lembrança vaga do que me salta quando lembro de algumas mulheres que aos fins de tarde sentavam-se ao meio fio das calçadas de minha rua para tagarelar. Tardes que parecem ter sido toda uma preparação para um advento de (*), que invadiu-me nas minhas partes incertas. Oh, o que não é incerto nesta vida? Sentimentos são incertos? Pessoas se vão? Existe o explicável? O amor, quanto tempo perdura?

...sei apenas de mim. Busco falhas.

Atrevo-me.

Qual o preço das coisas...? Como se responde sem saber o valor de tudo? Refaço-me. Porque toda pergunta que nos custa responder nos leva a refazer um pouquinho de nós na estreita estrada chamada “momento”. Que é o momento senão a palavra curta que se dá entre o que a idéia oferece e o tempo transpõe? (*) nunca foi de mim um presságio. Deixo ser. Porque o é. Careço de passos. Um sinal. Um canto, porque a voz me emudece. Depois de algum tempo o melhor é calar.

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