27 junho 2007

 

DO QUE ÀS VEZES NÃO PARECE SER EXTERNO


Estava apenas jogada sobre a cama. Braços encolhidos. Pernas entreabertas. De calcinha e sutiã, somente. Resvalava sobre o flanco da calcinha – que se justapunha à virilha – uma leve e sutil leva de pelos pretos e ásperos. A pele lisa mais parecia uma espessa casca de ovo, uma superfície corredia e indelével. Seus cabelos resistiam ao embaraço que desordenava a porção de fios que conflitavam entre si. Cabelos soltos, vadios, presos unicamente à alvura do travesseiro. Seu corpo não apresentava nada além de uma feição de enfado nascedouro da atividade contrátil que antes havia se entregado – embora fosse pouca a umidade que atestava a viscosidade do suor preliminar. Não importava se seu rosto estava enterrado no lençol. Mais valia o corpo mesmo que se submetia à volúpia que a cama inerte lhe causava, e isso de tal forma que, à medida que sua matéria se comprazia, ao mesmo tempo parecia fazer crescer os seus membros, os seus quadris, suas nádegas. Seus ombros retraídos curvavam-se de modo que envergava todo o resto do corpo. Seus seios eram fartos, bons de tamanho, salientes; contudo, se comprimiam sob a pressão do sutiã atacante. Como se não bastasse as suas coxas que apresentavam boa proporção, seus joelhos flexionados mais faziam com que suas pernas fizessem como que se parecesse um desenho indistinto, que por ora se confundia com rabiscos em uma folha em branco, ora uma escultura inacabada, esquecida durante algum tempo. Era um corpo enleado. Firme. Aterrado num leito. Despojado à horizontalidade do colchão. Nu quase de todo. Livre. Desprendido. Intensamente silencioso. Ajustado apenas ao torpor que selavam seus olhos, a boca, a face; como se a sua volta inexistisse vida, a vida pouca que lhe parecia ser externa.

25 junho 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -


MÁ COMPANHIA

O que às vezes estraga
nossa solidão é a chatice
de sempre estarmos
acompanhados de nós mesmos.

23 junho 2007

 



Para atender ao nosso período de Festas Juninas, postarei* um poema que acredito ser o que melhor ilustra esse tempo em que as fogueiras melam nossas roupas com sua fumaça (risos). Neste post, um poema em que o poeta Manuel Bandeira nos impele a observar o quão a vida é fugaz e cruel a ponto de nos furtar pessoas que acabam, independente da forma, ficando presentes em nossas vidas, ainda que dormindo (“profundamente”) o sono da eternidade, um sono em que o poeta vem a evocar durante o São João. Um Feliz São João a todos! Eis o poema:



PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

(Manuel Bandeira)



*= estou muito feliz por esse ser o post de n° 100 deste meu modesto blog, e essa felicidade se intensifica ainda mais por poder partilhá-la com outros amigos blogueiros/amigos da letras.

21 junho 2007

 

SOBRE O SILÊNCIO E SUAS MANEIRAS DE PROFANAR AS COISAS


Andei pelo silêncio da cidade, tentado devolver às ruas o que elas calavam – existe algo de cumplicidade no que se refere às ruas e ao silêncio. Nunca descobri ao certo o que é fazer silêncio. Penso que só é possível fazê-lo com o corpo e os olhos inertes. O silêncio só é possível se nada em nossa matéria externar movimento. Pois todo movimento implica perturbação, e esta, por sua vez, acusa a contração de algo que provavelmente estava a desfrutar de quietude. Mas como desvendaria o que o silêncio traria na vertigem muda da cidade? Como acalantar as ruas se só conheço canções que sequer são capazes embalar o asfalto e a lama que medeiam o acesso a minha casa? Nada mal para descobrir a sensação de morte que é vislumbrada na ausência de sons que a cor invisível do silêncio causa. Sim, pois o silêncio tem uma cor que foge ao que nossas pupilas acusam, muito embora nossa alma brinque de acomodar cores nos detalhes os quais os nossos olhos não alcançam. Eu sempre tive medo de brincar com o silêncio, justamente por não saber desenhar com os olhos o que o som sempre me apresentou. É que as ruas silenciosas incessantemente fizeram meus pés dançarem mesmo antes do vazio que havia nas notas musicais que sempre chegaram aos meus ouvidos, como se cada acorde montado penetrasse no que há de mais sagrado na zona fronteiriça do som e das formas cromáticas. Aprendi que silenciar é mudar de rumo, de cores, de espaço. Isso me fez perceber o quão é pequena a cidade sob pés de quem silencia. Pois todo silêncio é sagrado, e só as coisas sagradas é quem merecem ser tocadas. Assim, vacilando entre as calçadas, foi que encontrei a forma mais salutar de restituir a mudez que as ruas me concederam: perdoando o que me faltava, julgando o que me foi sentenciado, celebrando a mão que se despedia, incinerando o lenço lavado de lágrimas, descansando a minha voz no barulho – como se cada vibração vocal fosse um pecado, um testamento, um templo em que apenas seu deus pudesse tocar a vulva profanada de tanto silêncio.

17 junho 2007

 

O AMOR NASCE DO SUSTO


FORMA DE CASTIGO

É um pecado acreditar que o amor é um animal que se adestra. (que aqui se considere pecado como tudo que afasta Deus do homem!). O amor aceita tudo, menos regra. O amor é contradição. A atitude de amar deve ser uma atitude de se mal-amar. Um despojar-se mesmo. O amor não nos cobra nada senão trilhas perigosas. Ele deseja sempre um pé nosso infalso no abismo dos sentimentos. O amor foge a normalidades, foge ao beijo que se pensa dar, foge aos fuxicos ao pé-do-ouvido, foge à mão desesperada em noite fria; foge até mesmo à nudez do corpo. Amar é fugir dos sentimentos, pois é um ir além dos próprios sentimentos. O amor é um estado, e nunca poderá ser outra coisa. É um estado em que as coisas se desordenam e não buscam razão nenhuma para que venham a se ordenar. O amor exige desordem. Caos. Desalinho. Arruaça. Exige, antes de tudo, necessidade da sensação de desgraça. Uma desgraça que nos afaste da imbecilidade de sentir com frieza a outra pessoa. Pois, o amor exige que estejamos sempre em chamas diante da outra pessoa. O amor exige que estejamos sempre inconformados com a fumaça que salta de nossa pele, com o gozo que toca nossa lucidez, com a lágrima dormente que cisca em nossos olhos.

Acredito não haver forma melhor de se aproximar de Deus do que levantar a saia do desejo e meter a língua. Deus perdoa os ousados. A ousadia é a sobremesa do amor. A refeição é a entrega ao outro. Deve-se pecar para fugir do marasmo. O amor não aceita marasmo. Mas pecar no amor é a primeira chance de se encontrar com Deus. Deus se esconde dos que não pecam. (Ele sempre deixou isso bem claro!) O amor é um animalzinho que sempre andou ao lado de Deus, sem coleiras, com a pata ferida e com os olhos esbugalhados, querendo sempre encontrar a vira-lata mais vadia que puder. Amar é querer encontrar qualquer coisa que nos dê agonia. Algo que roce nosso pescoço qual um estrangulador de Pastor-alemão. O amor é aquela corda no pescoço que temos sempre medo de apertar. É um apertar de corpos numa garoa fria de inverno. O amor é um inverno que dissipa qualquer possibilidade de acontecer sem ferir as flores. Ele sempre se faz de pétalas para achar a melhor maneira de roubar a cena do jardim. Amar é a busca de desobrigar-se do peso de não ser amado. Amar é uma busca mascarada de castigar-se. É sempre uma punição imposta por si mesmo. Amar é pecar em comunhão com Deus. É pedir um castigo a Deus. O amor foi a forma mais discreta que Deus encontrou para nos castigar.

08 junho 2007

 

- COISAS QUE A GENTE NÃO PÕE O DEDO -



ESCONDERIJO

Esconder-se de si
é a tentativa mais
desesperada de
desenhar-se.

04 junho 2007

 
DO TEMPO NA OUTRA PESSOA

Como seria se nós pudéssemos parar o tempo? Se pudéssemos manusear os movimentos da terra e estancar aquelas horas que nos prendem ao raio incessante da vida? Talvez uma das maiores covardias da vida seja ela pôr vendas em nossos olhos ao estarmos a toda em pleno exercício de gozo espiritual e, logo, sujeitos às guinadas que, por assim dizer, têm o poder de tornar nosso caminho amargo e penoso. Entretanto, existe algo que se chama “conformismo”, e é nele que nos apegamos na nossa condição de incapazes de reverter certos quadros que a vida nos empurra de goela abaixo. Assim, o tempo também tem o poder de fugir a tudo que está preso às nossas mãos, aos nossos olhos, às nossas agonias. Quiçá isso explique a busca constante da outra pessoa, para na tentativa de dividir as nossas desgraças com outrem, estas desgraças fujam da gente, deixando as coisas mais leves... Enfim, talvez não seja essa a explicação necessária para achar as coisas temporalizadas na outra pessoa, uma vez que se busca nessa outra pessoa a fuga da morte, um tempo ininterrupto, um encontro com a leveza.

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