25 novembro 2006

 

FILOSOFIA IMPRECISA?!


Insuportável. Ver os dois se esfregando doía. Ainda mais quando ele aparentava estar embebido de cachaça. Ela parecia gostar do cheiro de álcool se espalhando em seu corpo. Uma porca. Desgraçada. Sempre havia me sentido superior aos dois, principalmente a ele. Mas talvez eu a quisesse por vaidade mesmo. O rabo dela me atraia. E, além de rabuda, diziam que ela lia Maiakovski, Baudelaire, Wilde, Voltaire etc. Tinha sim vontade de conversar com ela sobre esses autores. Não obstante, queria comê-la. A primeira vez que sentei o olhar em sua boca, nunca descartei a possibilidade dela me chupar. E, nessas horas, que se fodesse Literatura. Queria mesmo era estar em cima de seu dorso, como um cachorro em uma cadela.

Flertei. Mas sempre ela me atirava aquele olhar meio “Augusto dos Anjos com cólicas”. Olhava para ela na esperança de que aqueles olhos cedessem um fio de liberdade. Um fio ao menos. Os olhos dela pareciam ser estéreis. Não diziam nada. Mudos. Tentei até que ela percebesse o desassossego de meus olhos vadios. Nada. E assim, crescia o desejo de despi-la, de roçar-lhe a língua, de entrar em seu corpo, em sua alma, extrair versos impossíveis, rimas improváveis. Queria que tudo valesse. “Tudo convém para o homem ser completo”. Bem no fundo eu tinha a sensação de que ela era incompleta ao lado dele: aquele infeliz nunca lera sequer bulas. Ela sim, era lida. E como entender uma pessoa tão erudita, sagaz, culta, e com um nojento daquele?

Engolia isso seco. Sem cuspe. “Acostuma-te à lama que te espera!”. Tentei (e de várias formas) compreender isso. Fiquei sabendo pouco tempo depois que ela tinha um apetite sexual demasiado. Vadia. Mas era fiel a quem se chumbava. Quando grudava em um dava até o caroço, diziam. Mulher devassa. Suja. E de supetão me vinha tal cobiça: mesmo sabendo disso crescia cada vez mais a vontade de comê-la. Queria-a a qualquer custo. Tinha que ser sincero comigo mesmo: queria comê-la.

Passaram-se dias. Disseram que o cabra dela tinha se mandado. Tinha dado o pé. Suspeito. Encontraram a ordinária desbotada em seu apê. Estropiada. Morta em cima de sua cama. Branca, língua pra fora, olhos esbugalhados. Amordaçada. Fria, dura, rasgada, esfarrapada. Nua. De papo pra baixo. Coisa até assombrosa: um livro de Schopenhauer atolado em seu ânus. Parecia ter sido enfiado com força. Transpassado com escabrosidade pelas pregas anais. Não senti pena, comiseração, ou qualquer lástima. Fudeu-se. E fodeu-se mesmo. Espero que aprenda, com o próprio Schopenhauer: “Não engane ninguém, nem a ti mesmo”.

24 novembro 2006

 

DO VERBO AO CAOS


Estive há poucos dias em Recife. Cidade-cão. Bons ares poderia ter respirado por lá, não fosse a velha e já amiga Amigdalite que mais uma vez me arreou. Sofri como um jumento. Mas isso é só detalhe. Fui a propósito de um Seminário de Produção de Conhecimentos. Muito aprendizado. Sobretudo no que se refere ao cômico convívio humano. Quem já se desenganou com uma pessoa deve saber a que me refiro. Acho que isso é só mais um outro detalhe. Não comentemos essas banalidades que a gente sabe, sofre, disfarça, engole e nunca aprende.

Falemos da atmosfera lendária que é o Recife. Especificamente, quando cantado pelos poetas. Faço uma ressalva. Não acho que por serem “grandes” alguns poetas cantaram bem a cidade do Recife. É isso mesmo, sou avesso ao modo com que alguns poetas cantaram a terra natal de Nelson Rodrigues. Coisa muito pessoal. Pois, não consigo ver o Recife bem cantado por Bandeira, Cabral, ou mesmo Carlos Pena Filho. Na verdade, o Recife emperiquetado de poesia só me surge quando a música de Science emburaca em minhas retinas, mediante as próprias ruas, avenidas, e também o “caminho”, porque através dele é que “se ver o lugar melhor pra ficar”. Sim, aquele Recife que é do mangue, dos homens caranguejos, do caos, do barulho, dos becos, dos coletivos, das disparidades, da agitação, do suor do meio-dia etc.

O Recife por si só é poesia. Um travo. Ousadia cantá-lo. Mas já houve sim quem o cantasse cru, com a pereba bichada. Chico Espinhara, poeta que mora lá mesmo, ousou com precisão: “Recife, musa, maldição/cadela suja, traiçoeira/encantada cidade do cão”. Outro poeta, Erickson Luna, que mora lá e também vivo, fez aquele Recife conspirar em seu estado de transcedência, no poema Mariposa: “Pra eu poder/e só/andar nas ruas/fez-se em volta uma cidade”. Como é óbvio, é delicado pra mim aqui registrar todos os poetas que, a meu ver, cantaram tão bem o Recife quanto Chico Science. Mas eles existem. E ainda sim vivos. Sei apenas que é esse Recife que sinto. Esse que me é apresentado através dos poemas de alguns que ainda estão por trás das cortinas, e também das letras do Manguebeat de Chico, quando o caos se faz lama, e a lama se faz verbo.

13 novembro 2006

 

(do livro: Livro de Reminiscências)

AS HAVAIANAS SOB O SOL


Já tinha começado a acelerar o passo. Prestes a correr. Perder o ônibus àquela hora seria fatal. Foda mesmo. O suor na sola do pé bailava aos deslizes da Havaiana, sandália que sempre me acostumei. (Desde criança meus pais sempre me enfiaram uma bermuda, uma camiseta e um, tradicional, par de Havaianas.) Percebia que aquele coletivo estava dando sinal de partida, e eu há 200 metros do ponto não queria vacilar em perdê-lo. Decidi correr. Agoniado. Sol quente. “Quentura da doença do rato”, meu pai, lá em casa às vezes, exclamava. Quando dei por mim minhas pernas conseguiam com facilidade se alargar em meio à aflição de não perder o ônibus. Carreira da peste. Não tinha costume de correr tanto.

Logo veio a sensação de mortandade, náusea, ânsia de vômito, querendo botar pra fora o cuscuz com ovo do café da manhã. A goela entalando, pensava que o coração que iria saltar boca afora. Mal conseguia respirar como gente, parecia o fungado de um porco em confinamento. Mesmo assim estava dando o máximo de mim naquele pique. O coletivo começou a se afastar do ponto. Haveria sim a possibilidade de chegar a ele. Corria agastado como um cabrito sem mãe. Foi quando, há uns 80 metros do ônibus, na angústia de me meter naquele grande móvel, a sandália pocou. Torou-se o correia onde os dedos se prendiam. A cabeça do dedão do pé esquerdo arrastou seu couro fino sobre o chão. No asfalto grosso da rua.

Quebrou-se a unha e o sangue botou a vadiar. A ardência fora instantânea. O palpitar do dedo parece que havia aumentado ao perceber o lado direito do mesmo pé rasgado, a pele expondo a carne viva. Couro de lagartixa após a cipoada de uma pedra. Nisso, o ônibus já estava se distanciando um bocado. “Isso é um caralho!”, resmunguei rábido. Chamei uns quatro ou cinco “nomes feios”. Um senhor que passara ao lado se assustara, mas mesmo assim respeitou meu furor. Agora não mais havia como alcançar o ônibus. Tentei estancar o sangue apertando o dedo. Tudo que consegui foi apenas banhar minhas mãos com sangue. Recolhi a sandália. Fui vagaroso ao ponto, esperar o próximo ônibus, sabendo que quando chegasse em casa, além de lavar o pé com água hidrogenada e colocar mercúrio, tinha que procurar um prego pra ajeitar a correia, pra não levar "mãozada no pé-do-ouvido".

12 novembro 2006

 


WITNER, UM CAMINHO, UM LUGAR

“Não ter para onde ir é uma forma de sempre chegar”
(Fabrício Carpinejar)

Não se sabia se era a calçada que avançava. Ou crescia. Talvez fosse o corpo mesmo que estivesse diminuindo. Lixo sobre o chão ralo, palito de picolé, latinha de cerveja, vômito rente ao muro, embalagem de camisinha. Claro que o peso das pernas não se renderia a qualquer parada estratégica. Os passos seguiam. Lentos, mas seguiam. A quem?! Como sabê-lo? A própria voz, o soluço da própria alma, o pulsar de desejos distantes, conjugavam a maneira mais breve de ser atropelado pelo o que demais distante de si havia. Coisa distante como os braços de uma mãe que morre mesmo antes de amamentar. As mãos escorregavam vadias
pelas paredes sem reboco. O peso andava à tuna em suas pálpebras. Pois apenas seus olhos inertes eram que incutiam indiferença às coisas alheias. Escorregava a mão no bolso na

esperança que pelo menos algumas moedas lhe restasse. Não havia nada. Ficava mordido, como um bicho brabo preso, como um animal faminto fazendo de sua carniça roubada sua maior frustração. Aquela calçada lhe parecia um deserto, embora várias pessoas ocupasse espaços da mesma. A tarde estava morrendo. Vagarosa. Restava-lhe o caminho de volta. Tem caminho de volta quem não sabe onde está? Isso não era lícito perguntar. Retornar era preciso.

Talvez nem tanto. Estar ali bastava. (Qualquer lugar basta a quem caminha a esmo.) A calçada diminuía. E seu corpo se confundia em meio à bitucas, garrafas vazias, copos descartáveis, resto de esperma na parede, folhas secas, papéis rasgados. A noite desabrochava lentamente. No entanto, o caminho se fazia lugar - não mais que lugar - lugar apenas. Um lugar pouco, onde nunca se soube onde era.

09 novembro 2006

 

A NEO-METAMORFOSE


“Eu quero é viver num porão!” Exclamou com fúria um dos escritores de minha cidade. (Sobre a exclamativa desse escritor, o poeta André Luiz de Castro já escrevera). Não pense, leitor, que isso é chacota. Nivaldo Tenório afirma que quer se enfurnar num porão e que vai exigir apenas um buraco por onde entre incondicionalmente sua comida. Isso tudo à custa de sua reclusão e amancebo junto aos livros. Desequilíbrio mental, insanidade ou desvario? Não se sabe. O fato é que o autor de A Grande Torre quer se danar num buraco e somente ler. Ler como um desgraçado, como um infeliz que a todo custo estuda angustiado na véspera de uma recuperação final. Viver para a Literatura. Ler. Só e unicamente. É o que ele ambiciona.

Em seu texto sobre tal acontecimento, André suspeita ser um “surto de loucura”. No entanto, creio que todo e qualquer diagnóstico sentenciado, sobre este fato, é pouco. A coisa é delicada mesmo. Detalhe: querer “viver num porão” é apenas uma das “ações suspeitas” que o poeta menciona acerca do comportamento irregular de Nivaldo. Pois, ele teve sim outras atitudes esdrúxulas. Mas, externar a vontade de querer viver num porão, transcendeu qualquer forma de excentricidade: atitude Kafkiana. Em breve espero encontrar Nivaldo bem; não transformado em mofo nem rato, nem em barata ou qualquer outro inseto. Para daí poder tranqüilo dar continuidade a meu romance:

- Certa manhã ao ler livros que o deixou intranqüilo, Nivaldo Tenório encontrou-se em seu porão metamorfoseado num escritor presunçoso...

03 novembro 2006

 

A MORTE DE TONHA

Tonha morreu. Sim, há poucos dias. Lavou roupa durante muito tempo lá em casa. Não foi uma morte trágica nem dolorosa. Há dias que ela esperava - com a boca cheia de riso - a culminância da falência múltipla de seus órgãos. Mas não foi sequer uma espera angustiante. Antes de tudo, além de ter consciência de sua desgraça, ela parecia olhar nos olhos das pessoas com muito vigor, e um vigor que crescia cada dia a mais. Fiquei ponderando sobre a força e aceitação de sua própria morte. Nunca se mal disse, nem tampouco se lamuriou. Expirou no meio da tarde do dia de finados. Dia bom de morrer, bem simbólico, penso. Afinal, também não sei se existe um dia bom pra se morrer? Acredito que o dia bom pra se morrer deve ser quando a gente se sentir à vontade pra se retirar do plano terrestre. Sim, esse deve ser o dia.
Acho que muito dos infortúnios do homem vem de sua ignorância enquanto seu poder de criação. E, como o homem é um ser muito criativo, criou também essa imagem de desgraça que a morte tem. Uma imagem que não abateu Tonha. Ih... e agora? será se ela também vai lavar roupa lá no céu? .(sim, porque tenho certeza que ela deve está no céu). É difícil responder. Primeiro, porque não se sabe se Deus usa roupas ou pratica nudismo, se tem dinheiro pra pagar ou se é um tremendo velhaco, se tem próprias lavadeiras ou se ele mesmo tem máquina de lavar etc. São questões que devem ser pensadas delicadamente.
No entanto, ficam encravadas em minha memória as boas lembranças de Tonha ao ir lá pra casa lavar roupa: vestes rotas, cabelos desembaraçados, andar acelerado, muita empolgação, pessoa sorridente (um sorriso que sempre me brindava com um hálito de cachaça: Pitú). Tonha era daquelas que preferia perder o amigo, mas nunca a piada. Quando eu era criança ela tentava me ensinar a contar umas piadas (coisa que nunca aprendi). Pois, agora espero que ela tenha me ensinado a morrer, me convencendo de que a vida é uma piada que nunca nos faz parar de rir.

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