13 novembro 2006

 

(do livro: Livro de Reminiscências)

AS HAVAIANAS SOB O SOL


Já tinha começado a acelerar o passo. Prestes a correr. Perder o ônibus àquela hora seria fatal. Foda mesmo. O suor na sola do pé bailava aos deslizes da Havaiana, sandália que sempre me acostumei. (Desde criança meus pais sempre me enfiaram uma bermuda, uma camiseta e um, tradicional, par de Havaianas.) Percebia que aquele coletivo estava dando sinal de partida, e eu há 200 metros do ponto não queria vacilar em perdê-lo. Decidi correr. Agoniado. Sol quente. “Quentura da doença do rato”, meu pai, lá em casa às vezes, exclamava. Quando dei por mim minhas pernas conseguiam com facilidade se alargar em meio à aflição de não perder o ônibus. Carreira da peste. Não tinha costume de correr tanto.

Logo veio a sensação de mortandade, náusea, ânsia de vômito, querendo botar pra fora o cuscuz com ovo do café da manhã. A goela entalando, pensava que o coração que iria saltar boca afora. Mal conseguia respirar como gente, parecia o fungado de um porco em confinamento. Mesmo assim estava dando o máximo de mim naquele pique. O coletivo começou a se afastar do ponto. Haveria sim a possibilidade de chegar a ele. Corria agastado como um cabrito sem mãe. Foi quando, há uns 80 metros do ônibus, na angústia de me meter naquele grande móvel, a sandália pocou. Torou-se o correia onde os dedos se prendiam. A cabeça do dedão do pé esquerdo arrastou seu couro fino sobre o chão. No asfalto grosso da rua.

Quebrou-se a unha e o sangue botou a vadiar. A ardência fora instantânea. O palpitar do dedo parece que havia aumentado ao perceber o lado direito do mesmo pé rasgado, a pele expondo a carne viva. Couro de lagartixa após a cipoada de uma pedra. Nisso, o ônibus já estava se distanciando um bocado. “Isso é um caralho!”, resmunguei rábido. Chamei uns quatro ou cinco “nomes feios”. Um senhor que passara ao lado se assustara, mas mesmo assim respeitou meu furor. Agora não mais havia como alcançar o ônibus. Tentei estancar o sangue apertando o dedo. Tudo que consegui foi apenas banhar minhas mãos com sangue. Recolhi a sandália. Fui vagaroso ao ponto, esperar o próximo ônibus, sabendo que quando chegasse em casa, além de lavar o pé com água hidrogenada e colocar mercúrio, tinha que procurar um prego pra ajeitar a correia, pra não levar "mãozada no pé-do-ouvido".

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