27 junho 2009

 

Quando quero chover


Acho engraçado quando os pingos de chuva ficam se equilibrando sobre os fios. Isso é o que me faz às vezes pensar que certas coisas da vida deveriam ser mais simples do que aparentemente são. É no detalhe das gotas que se equilibram na umidade do inverno que espanto as coisas que me consomem no dia a dia. Penso que nossos olhos nos pedem tão pouco, e na maioria das vezes somos tão mesquinhos a ponto de olhar apenas para o que é abocanhado pelo que nossa carne pede. Aprendo que a cerração da chuva respingando na parede é quase uma pintura que se compõe em sua incoloração. Aprendo que inventar aquilo que a gente vê é desfigurar o que a gente nunca pretendeu sentir. Porque se tem coisas que não existem, cabe a nós inventá-las sempre, como uma pluma que atravessa o ar, acaricia o vento e lentamente desce com sutilidade buscando o chão. É quando o lamento de não sentir o toque dá a vez ao surpreendente. E surpreender é encantar. E o encanto nasce antes mesmo de haver algum aceno, como uma gota que se equilibra sobre os fios, toca o chão faz nascer o improvável. É assim que creio que um pingo de chuva é capaz de inundar um homem.

23 junho 2009

 

Sobre a inexatidão do uso do papel higiênico

Alguém sabe a medida certa da quantidade de papel higiênico que vai usar ao ir ao banheiro? Não?! Pois é, também fiquei intrigado quanto a isso. Causa disso foi um fato que aconteceu comigo há alguns dias atrás. Voltando da capital paraibana, João Pessoa, depois de ter cumprido meu dever social, ao ter ido ao casamento de um primo, L; quando no terminal rodoviário fiz um pit stop (antes que o ônibus saisse) para desafogar meu intestino, que me impelia a defecar, e aí um senhor, logo na entrada do WC, responsável pela limpeza sanitária, com a certeira intuição de que eu iria ao sanitário, ergueu-me aproximadamente uns 50 centímetros de papel higiênico, balançou a cabeça e afrouxou um sorriso.

Nisso, entre dizer que aquele tamanho de papel não era suficiente e justificar o porquê, peguei o papel como se fosse o bastante para me limpar. Grato e ao adentrar no WC, dei quatro passos em direção ao sanitário. Entrei naquela espécie de divisória, e antes mesmo de sentar ao vaso, verifiquei que de fato a quantidade de papel não daria para deixar limpo o que eu deveria limpar. Em meio àquele cheiro insuportável de banheiro público, retornando até aquele senhor, e já de longe fincando-lhe um olhar de pedinte, ele já fora se dirigindo ao local onde havia deixando o papel e foi metrificando mais outra proporção que acreditava que atenderia às minhas necessidades. Partiu mais um pedaço e me entregou. Agradeci novamente. Presumi que daquela vez ele havia me dado um tamanho suficiente, que aqui não vou precisar, mas que realmente pude me limpar com êxito.

Ao lavar as mãos, depois de ter cumprido com o que meu organismo pedia, saindo do WC com a cabeça atingida por mil interrogações sobre o que havia ocorrido, desde esse dia nunca mais saiu de mim esta indagação: qual a medida certa da quantidade de papel higiênico que se usa ao ir ao banheiro? Entendo que não é uma resposta passível de precisão. Pois que é essa só mais uma medida das coisas que existem na vida e não sabemos como precisá-las. Assim deixei João Pessoa, e trouxe comigo a Garanhuns a inexatidão de medida certa do uso pessoal do papel higiênico.

18 junho 2009

 

Dos medos de quem escreve

O primeiro medo de quem escreve é sempre o último ponto. Final. Creio. Pois, a aventura de escrever é algo que nos acompanha desde a primeira linha, ou verso, e vai até o sinal de pontuação (se houver) da última palavra. Terminar um texto é parir um pouco da gente. É sempre uma gestação um pouco conturbada a da arte da escrita. Num primeiro momento, escrevemos pela necessidade do prazer, da excitação desejada. Depois, ao fim do que foi escrito, vamos limpar todo espermatozóide que ficou sobre a superfície das palavras. Fazemos então uma assepsia verbal.

É infinitamente mais difícil assumir o término de um texto do que propriamente assumir que o texto está em fase de composição. Principalmente se for um texto literário, que, por sua própria natureza, nunca está encerrado em si. Quem não tem medo do que o outro vai pensar sobre o que você escreveu? Quem nunca temeu um comentário desastroso sobre sua escrita? E é aí onde mora a magia da escrita: esperar a posição do outro diante de você, diante dos efeitos do que seu texto causou. Escrever, em última estância, é uma afronta ao outro. É permitir que as suas palavras se tornem espelhos.

Quando se termina um texto dá-se um “adeus” ao lado escuro da alma. E é justamente aí onde mora o medo do ser humano: ser revelado, conhecer-se. E isso é uma das funções da Literatura: revelar o homem, servindo de suporte para que ele próprio se conheça a partir de uma realidade criada. Assim, o término de um texto é sempre um “o que quis dizer com isso?” Entretanto, o ponto final é sempre o começo de uma nova história. Ouso dizer que a vida só começa quando a escrita esconde o ponto final. Ponto.

10 junho 2009

 

A outra saliva

Pintura O Beijador (Picasso)


Meu primeiro beijo na boca foi quase forçado – como tendem a ser os primeiros beijos. Eu não estava pronto ainda para descobrir o prazer através da boca. Eu sabia que aquilo deveria ser bom. Meus amigos todos já haviam falado. Já haviam beijado. No entanto, nada que me causasse pressa. Só que determinada vez foi inadiável. “Amanhã, em frente à casa da esquina, às três horas”, foi o que J. me disse, dando as costas para mim. Indo embora depois de dizer: “escove os dentes”. Meus amigos ainda não haviam me dito que para se beijar teria que escovar os dentes. Também, eu não tinha mau hálito. Fiquei curioso sem saber o porquê daquilo. Disseram-me depois que J. queria me beijar, que estava enamorada comigo.

Aquilo foi o suficiente para me fazer gelar os pés e me causar um leve tremor nas mãos. Minha respiração se tornou tão ofegante, que me fez ficar com uma sensação de porco no farelo. Não sabia o que fazer, ou melhor, o que dizer. Não sabia se eu saia correndo para casa sem dar satisfação a ninguém, e fingia que não havia escutado nada; ou dizia que ela era feia e não queria nada com ela, como faz qualquer criança como álibi de seus sentimentos mal resolvidos. Resolvi não fazer nada disso. Em meio à barulhada de meus amigos, estufei os peitos, ergui a cabeça e me retirei como se fosse um homem que tivesse uma grande missão a cumprir no outro dia.

Em casa, após um banho e a janta, algo começou a mexer com meu estomago. Não foi fácil chegar o sono. A noite se aprofundava. Eu, aos cochilos interrompidos: visualizando J. chegando até mim e tocando seus lábios nos meus. Mesmo desta forma não dava para relatar nada sobre a sensação de um beijo. Assim, a manhã rasgou a madrugada. O sol desceu cintilante. Após o café da manhã, segui para escola. A manhã naquele dia custou a passar. Junte-se isso à minha pouca concentração nas aulas. Chegando em casa, tão logo ao almoçar, peguei um manual de escovação que havia em um kit escolar meu. Escovei meus dentes impecavelmente. A hora avançou.

Quando apontei à casa da esquina, já havia muita gente ao longe. Alguns, trepados nas árvores; outros, por sobre os muros, outros ainda se escondendo atrás dos carros. J. já estava lá. Mas ao chegar perto dela o que dizer? Não sabia. Ia para ali com a mais pura inocência de quem iria ser beijado por uma menina 3 anos mais velha. Não houve tempo para construção de nenhum discurso entre eu e J. Ao chegar perto dela, transcorrido 4 segundos, ela atirara seus lábios nos meus. Que coisa estranha era uma língua entrando em minha boca! Os meus amigos que acompanhavam tudo só faziam encher de estardalhaço a rua, em meio a gritos e assovios. Minha boca era então beijada pela primeira vez. Meio que apulso. Forcei-me. Não estava pronto para permitir a saliva de outra pessoa na minha boca.

08 junho 2009

 

Muito Além

Foto: Nietzsche em estado de delírio

Toda vez que leio Nietzsche sempre sinto náuseas. Não pela sua obra. Mas sim pela densidade de sua filosofia, que me encurrala, me aprisiona em mim mesmo. Ecce Homo está me causando crateras na alma. Estou lendo este livro do Nietzsche, ciente de que não é um de seus livros mais densos, porém sempre me invade uma sensação de que a vida pesa bem mais do que a dor de não saber vivê-la. Na verdade este é um livro em que Nietzsche faz uma viagem, uma breve análise sobre suas principais obras. Mas do que qualquer outra coisa, vemos em Ecce Homo um autor extremamente prepotente e, por outro lado, ferido pelo pouco reconhecimento de que era vítima. Mesmo assim, não me vejo nesta existência abrindo mão de ler este filósofo. Sempre gostei de lê-lo. Às vezes por necessidade de ânimo, embora na maioria das vezes esta tenha causado efeito reverso. Às vezes para esculhambar o vazio existencial que vez por outra me assola.

É bom lembrar que Nietzsche é um filósofo muito em evidência no limiar de nosso século XXI. Eu sequer gosto de entender o porquê disso. Pois, discordando do próprio Nietzsche, que dizia que era “extemporâneo”, ou seja, um ser fora de seu tempo, acredito que sua filosofia, é uma filosofia do “desde sempre”: independente do período da humanidade, ele sempre esteve falando para o humano, sem distinção de qualquer século que esteja impresso. E eu, independente da leitura de qualquer livro seus, sempre sou vítimas de náuseas. E vou aprendendo com isso: certas leituras são pontes para náuseas. Neste caso, não as leituras si, mas o que as leituras são além de si.

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