25 julho 2009

 

Do mundo das bexigas


A primeira vez que vi uma bexiga deu vontade de mordê-la. No entanto, no primeiro momento, só fiz acariciá-la. Colorida, pensei que tivesse um gosto, fosse doce. Eu não lembro bem a idade que tinha. Mas era uma idade ainda em que toda novidade parece ser magia. Tinha visto em um aniversário várias bexigas. De formas ovais e leves. Estavam apregoadas na parede da sala, da casa de um colega da escola. Todos os meus amigos queriam correr, brincar de Milu, pega-pega, e eu ficava ali, parado, em meio ao som da Xuxa, contemplando as bexigas na parede, esperado a hora de ganhar uma, posto que antes já me houvessem advertido de que só iriam distribuí-las depois que cortassem o bolo. E eu sem querer, olhando para as bexigas que enfeitavam a festa, me pegava solfejando “Ila ila riê”.

Teve um amigo de meu pai que perguntou desinibidamente se eu tinha algum problema mental: era estranho uma criança se isolar das outras e ficar com as mão enterradas no queixo olhando para bexigas enquanto as outras crianças tanto brincavam. “Não, ele é assim mesmo”, me pai respondeu se referindo a mim e ao meu comportamento. Lembro que a festa correu. Muito devagar para minha ânsia. Ao partirem o bolo, todas as outras crianças foram pra cima da mesa em que se formava fila para receber o bolo e o refrigerante. Eu fui o único que correu em direção às bexigas, na contra-mão mesmo. Todos acharam que eu tinha visto algo de anormal, tinha me assombrado. Até que a mãe do aniversariante, penso que um pouco assustada comigo, arrancou uma bexiga do barbante que a prendia no prego da parede, e entregou-me uma. Enquanto os outros se lambuzavam com bolo, doces e salgadinhos eu ficava ninando a bexiga. Fui pra calçada da casa, arrastando a bexiga pra lá e pra cá: nunca que eu soubesse que a minha vida naquele momento era tão leve e tão mágica como uma bexiga.

17 julho 2009

 

Quando os postes não esperam

Foto: orelhão da Rua Antônio Cesário Brasileiro (por Wagner Marques)

“Diga o que disserem, o mal do século é a solidão”. Esse é um dos trechos de uma das letras de Renato Russo que mais curti em minha adolescência. Esperando por mim é o nome da música. Lembro que estava um pouco down quando pude sentir o que me dizia esta música. Algo muito pessoal. Tão pessoal quanto uma conversa ao telefone. Por falar em telefone, por estes dias cheguei à conclusão que os orelhões, em nossa contemporaneidade, sofrem de uma solidão absoluta. Bate papos virtuais, Chats, MSN, Orkut, celulares etc. são meios que ceifaram a urgência dos orelhões. Penso que nunca na vida os orelhões se sentiram tão inúteis quanto se sentem agora. A inutilidade é irmã da solidão. Exemplo disso é quando estamos amargurando a solidão: sentimos-nos a mais inútil das criaturas. Na mesma perspectiva, quando nos sentimos inúteis somos atropelados por uma profunda sensação de solidão crônica.

Os orelhões hoje não são mais feitos para os humanos. Todos os humanos, no mínimo, já tem celulares. Os orelhões são feitos para fazer companhia aos postes, aos muros ou as árvores. Só orelhões é que sabem a dor de não ter ninguém. Mais que qualquer um. No fundo todo orelhão tem uma ponta de conhecimento sobre isolamento. Os orelhões sabem o que é esperar. Eles esperam horas a fio. Sem orgulho. E foi assim que quando eu escutava “cada um de nós imerso em sua própria arrogância esperando por um pouco de afeição”, em Esperando por mim, e sentia o desespero que é nos acostumarmos a se afogar em nós mesmos, como também percebia que é desesperador pensar que sempre esquecemos de olhar para as coisas que sofrem pela falta de nosso primeiro passo para erradicar a solidão. A solidão só deveria ter sido feita para a arte. Não para nós, nem para os orelhões.

09 julho 2009

 

Sobre as verrugas que nos inflamam

Vi uma cena aterrorizante quando liguei a TV hoje pela manhã: uma senhora que implorava o amor do vizinho sob pena de se jogar do alto do edifício em que morava, caso não fosse atendido o seu desejo de com ele viver e a partir dali ficar junto pra sempre. Não pude ver a cobertura completa. Confesso que fiquei estarrecido com o choque emocional que tomei quando dei por mim testemunhando entre o público que assistia aquilo tudo em tempo real. Os câmeras filmavam ao longe o marido, que não se demorou muito a acompanhar tudo aquilo. Ele quase não acreditava que sua esposa estava ali ameaçando se jogar caso o outro não assumisse viver com ela. Saiu em seu carro se esquivando da imprensa. Segundo informações da emissora de televisão, eram casados há oito anos. Mas agora ela queria o vizinho. Não se sabia informação se entre os dois já havia tido algo. Mas o fato é que a mulher em seu choro compulsivo estava a ponto de se engasgar de tanto chorar, rente o parapeito do apartamento, reivindicando que o vizinho a assumisse. Que a amasse profundamente.

É assim que me convenço de que o amor só se concretiza numa pessoa se fizer dela refém. O amor é uma aposta que põe em jogo o nosso senso de normalidade. Mas diante da cena que acima testemunhei não posso dizer que fosse um amor puro. No mínimo era um amor subnutrido, regado pela falta de aceitação de si. Pois a aceitação de si é o que disciplina a nossa doação ao outro. Amor sem disciplina é um carro sem freios, um bola de futebol numa ladeira.
Eu não sei se vocês se sentem o mesmo, mas diante de situações como esta, ver alguém mendigar um amor, pondo em risco sua própria vida, ameaçando se jogar do alto de um prédio, dá uma vontade de estar embaixo, com uma torcida para gritar: “pula, pula, pula...” Amor é suicídio mesmo. Para se amar alguém profundamente tem que se ter a consciência de que se o amor é pra velar tem que ser desastroso. Ser desastroso não que dizer não ter apreço por si. Ser desastroso é estar consciente de que o amor é uma verruga que nos inflama silenciosamente enquanto paramos para contar estrelas.

06 julho 2009

 

A jaca como afirmação dos homens

Foto: Os homens e a jaca (Wagner Marques)

Como sempre, quando estou indo ou voltando do trabalho, gosto de fisgar o que vejo de interessante entre os da minha cidade. Desta vez, antes de chegar ao trabalho, quando parei num chaveiro, no centro da cidade, enquanto aguardava um senhor fazer as cópias de algumas chaves de minha casa, me surgem alguns homens envoltos de uma jaca - sobreposta a um balcão onde se consertava relógios - partilhando-a com voracidade em plenas 8 horas da manhã. Por um momento aquilo me recordou a Santa Ceia. Mas o que mais me chamou a atenção foi o sentimento de união que enchia os olhos daqueles senhores. Entre risos e piadas, se fartavam diante da jaca. Bocas peguentas, bagos caídos, moscas arriscando se chegar. Coisas que fizeram aguçar ainda mais a minha mania de fotografar (sem autorização dos fotografados) com a mais pura discrição aqueles homens. Como se estivesse tentando fazer uma ligação no celular, fotografei, através do celular mesmo, os senhores sem que estes o percebessem. Assim lanço aqui esta fotografia como partilha do mais profundo de sentimento humano que me invadiu nesta manhã. Sentimento arredio, de quem rouba: sentimento de quem rouba as imagens de homens que apostam que mais vale se afirmar através de uma jaca, do que se distanciar por tesouros intangíveis.

01 julho 2009

 

Quando se aproxima o toque

A: uma mão sobre a ferida. B: um sim sob a negação. De tão inerte os braços de A se escondiam entre o corpo. De tão móvel as pernas de B esqueciam que o tronco as unia. Era um olho que faiscava, e não luzia nada. Se fosse a sensação do que um sentia pelo outro não poderia haver confissões. Toda confissão desnuda. B não conhecia o que estava fora de si. Assim como A enchia de ternura as coisas que dentro dele se revelava aos poucos, sem causar barulho ou alarido. Era uma dor mansa que invadia a um e a outro. Um baixava a vista, como que querendo dizer “não se aproxime”. O outro estendia os olhos, como que dizendo “a distância não me basta”. “Se fosse só sentir saudade, mas tem sempre algo mais...”, era só uma melodia, e penetrava tudo. Era a ritmia. Uma onda. E era os altos e baixos que sempre surgiam diante do que não deveria ser confessado.

“Ponha suas mãos sobre mim e te confesso que não mudei”, um dizia com a boca trancada de tanto estrondo. Que se faça a cruz a tua imagem, disse B sem aspear. Não aspeando também, a tua chaga seja a minha luz, rebateu A sem dar solavancos em sua voz. Talvez porque ambos já trepidassem. E era um querer sem maldade. Pois toda maldade tem um pouco de querer. E quando se deseja sem querença é como um trem descarrilando. Nunca que um fosse pôr a mão sobre o outro com a infantilidade de quem joga a sobremesa fora. A via, B fazia não ver. Mas eram olhos na mesma direção. Que fossem. Sem machucar. Pois olhares também machucam. Os olhos de ambos eram como taças de algodão que se derramavam uma na outra. Eram o cálice que guarda a perfeição da embriaguez.

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