31 outubro 2008

 


DO AMOR QUE SE ROUBA

Talvez só depois da terceira vez que Amanso viu sua mulher na cama com outro homem foi que ele pôde perceber que ela não lhe amava mais. Ele preferia mentir para si mesmo que sua Edjane tinha feito aquelas coisas só por mera aventura. Nas vezes anteriores que havia descoberto sua esposa nos braços de outro, em seu quarto também, achou melhor fazer de conta que quem lhe traia eram só seus olhos. “Uma visão, por que não?”, indagava silenciosamente. Todos sabiam que Amanso tinha perfeito estado de saúde mental. Chegavam a jurar. Porém, pelo menos aparentemente, não sabiam que ele havia prendido duas vezes a respiração ao ver sua mulher de pernas abertas diante de outro homem. (O mesmo homem?!) Seria bondade demais de Amanso? Sua alma seria tão complacente a ponto ceder sua reputação a ponto de fingir que nada aconteceu?

***

Empurrou a porta de leve. Nunca entrava em casa fazendo barulho. Era costume. Sua mão sempre girava o trinco com a maciez de quem acaricia um recém-nascido. Não abriu a porta completamente. A porta ficou meio aberta apenas. Sinceramente, não havia achado nada de estranho em sua casa – fora o silêncio que há instantes havia lhe invadido os ouvidos. Cruzou a sala, o corredor. Quis ir ao quarto beijar sua esposa, pois àquelas horas provavelmente ela já havia chegado do trabalho, devia estar dormindo. Cria. Mais de leve ainda foi aberta, não totalmente, a porta do quarto. Com delicadeza. Apesar do pouco ruído que a porta fez, não foi o suficiente para agredir a percepção de Edjane e seu amante, que se entregavam à cumplicidade do prazer total o qual seus corpos eram vítimas. Amanso pela primeira vez talvez não houvesse entendido bem o que via pela fresta da porta: a mulher que ele amava, e com quem era casado há vários anos, se entregava em sua cama a outrem. Não era fácil decifrar o que a alma de Amanso deveria estar sentindo, pelo menos o que naquele momento deveria estar sentindo. Como sabê-lo?

***

Não havia bem amanhecido. Mas a notícia já estava de boca em boca: nos bares, nos cafés, nos jornais, nas ruas. “Um homem havia sido encontrado morto, na praça central da cidade”. Confessaram encontrar um homem com a pele estranhamente arrepiada, trêmulo ainda, com os olhos vermelhos e a respiração exaurida. “Suspeita de suicídio”, havia quem dissesse. “Deram coisa ruim pra o infeliz”, diziam outros. Não precisaram de muito para identificar que era Amanso que ali havia, aos poucos, encantado. Em coisa de minutos foi consumado: “quem partiu dessa pra outra foi o Sr. Amanso mesmo”, disse um moleque que atravessava a rua chutando uma garrafa pet. Nos bolsos das calças de Amanso, nada: nem documento, nem carteira, nem dinheiro. Apenas um papel ligeiramente amassado que dizia: “Ai, djane, quanto amor me deste com o amor que por outro me foi roubado”. Talvez este escrito de Amanso desse um poema, uma teoria, uma bela inscrição para uma lápide. Sabe se lá... Fato é que sua vida foi encerrada com uma frase de efeito, como se nada tivesse que ser dito, cabendo à incompreensão apenas registrar a angústia de presenciar a concretude de uma infidelidade, descarada.

Comments:
Para que amar o que não se pode ter? Para que amar o que te faz sofrer? Será melhor morrer? Melhor vivier em ilusões? Dentre tantos mortos e feridos ainda há uma residuo.
 
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